"Se você treme de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros." (Che Guevara)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Não vai ter Copa!

Por Mauro Iasi.
O futebol é um esporte. Para quem pratica e para quem assiste costuma ser muito apaixonante e cumpre funções bem interessantes. Por exemplo, podemos sofrer, nos alegrar, chegar à exaltação, por motivos absolutamente irrelevantes: uma bola que passou perto, a polêmica marcação de uma penalidade, uma jogada de efeito ou mesmo uma absolutamente ridícula, uma cena magistral da mais pura arte que resulta em gol ou um caos de corpos e acidentes que culminam na bola rolando indolente ao cruzar a linha sob o olhar de milhares de pessoas.
Reprodução
O futebol, como tudo, foi capturado pela sociedade da mercadoria. Na sua forma mercadoria, seu valor de uso é subssumido pelo valor de troca. É só meio para realização de mais valor, para a valorização do capital. Desta maneira é espetáculo, não em seu conteúdo substantivo (nos elementos que o constituem como esporte ou na paixão que provoca), mas em sua própria forma.
O megaevento, a Copa da FIFA, é só a potencialização desta forma mercadoria levada ao máximo, com seus negócios, interesses, investimentos, mercados milionários, a indústria do turismo e outras que passam a ocupar a centralidade que antes o jogo ocupava. Soma-se a este fato a conjuntura em que ocorrem os jogos e sua utilização política como são famosos os exemplos das olimpíadas na Alemanha nazista e a Copa do Mundo na Argentina em 1978 na época da ditadura militar.
Por tudo isso a polêmica entre as “torcidas” que defendem que “Vai ter Copa” ou “Não vai ter Copa” não pode ser compreendida apenas pela dimensão do evento esportivo em si mesmo, nem tão pouco pelo simplismo da contraposição abstrata e insidiosa que procura contrapor “quem torce pelo Brasil” e aqueles que “torcem contra o Brasil”.
Em uma coluna de opinião publicada na Carta Maior um senhor chamado Antonio Lassance que se identifica como “doutor em ciência política e torcedor da seleção brasileira”, pretende dar argumentos para aqueles que querem defender a realização da Copa contra os que denomina de “profetas do pânico”.
Para o autor existe “uma campanha orquestrada contra a Copa do Mundo” que apesar de composta por poucos, tem conseguido “queimar o filme do evento”, arrastando muita gente que, mesmo sem ser virulenta e violenta, “acaba entrando no clima de replicar desinformações, disseminar raiva e ódio e incutir, em si mesmas, a descrença sobre a capacidade do Brasil dar conta do recado”.
Em resumo, seus principais argumentos são que aqueles que atacam o evento servem-se da desinformação. Sendo assim, o autor procura oferecer as informações “corretas” aos seus leitores. Diz ele: “Não conheço uma única pessoa que fale dos gastos da Copa e saiba dizer quanto isso custará para o Brasil. Ou, pelo menos, quanto custarão só os estádios. Ou que tenha visto uma planilha dos gastos da Copa”. Nós poderíamos apresentá-lo à algumas pessoas muito bem informadas, como a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) ou indicar o site www.portalpopulardacopa.org.br , mas desconfio que ele não quer este tipo de informação. Prefere apenas dizer que é a maior parte dos recursos não são gastos em estádios (apenas 30% das verbas são destinadas a este fim), oferece alguns números como o custo total estimado em 26 bilhões, os investimentos públicos e privados em aeroportos, com segurança pública e outros). A esses argumentos agrega que os gastos com educação e saúde cresceram, independente da Copa e que o montante necessário não é prejudicado pelos investimentos no evento, da mesma forma que, segundo ele, os eventos deixam na maior parte do que foi feito um “legado”, tecendo um raciocínio estranho segundo o qual, por isso não importa se as obras estão ou não atrasadas. Por fim, reafirma sua crença que o Brasil pode dar conta de sediar os eventos e que a critica não passa de um sentimento de “vira lata” que está preso a uma autoimagem que coloca o país como um eterno incapaz, concluindo:
“Podem ocorrer problemas? Podem. Certamente ocorrerão. Eles ocorrem todos os dias. Por que na Copa seria diferente? A grande questão não é se haverá problemas. É de que forma nós, brasileiros, iremos lidar com tais problemas”.
Notem que se trata de munir os seus leitores de informações para contrapor um movimento que segundo seu próprio juízo está tendo sucesso em azedar o clima. Ele está, não sei se consciente ou não, respondendo a um chamado dos governistas que conclamaram recentemente tanto “intelectuais” de um lado e “movimentos sociais” de outro para intervir mais no jogo das redes de opinião diante da ofensiva do movimento “Não vai ter Copa”. Bom, digamos que ele não se mostrou um soldado muito bom, mas é representativo da indigência da defensiva governista diante de algo que não entenderam com a profundidade e seriedade necessárias. O próprio Lula expressou posições ainda mais primárias em vídeo que circulou na internet.
É no mínimo estranho que um governo que não teve por prática dialogar com movimentos sociais e que destrata os intelectuais, os convoque agora para encobrir seus problemas a golpe de discursos argumentativos nas redes sociais.
Se ele culpa a desinformação como principal arma dos profetas do pânico, teria que ter um pouco mais de cuidado com as informações em que se apóia, senão vejamos. O autor nos afirma que os gastos com o evento estavam estimados em 26 bilhões, mas oculta oportunamente que inicialmente foram orçados em 11 bilhões, já chegaram perto dos 28 bilhões e podem chegar a 33 bilhões, repetindo um enredo que já era conhecido se lembrarmos os dados sobre os gastos com os Jogos Panamericanos, que estavam previstos em 409 milhões e acabaram com algo perto de 4 bilhões ao final.
Em alguns estádios, se pegarmos casos particulares, como o Maracanã, as obras estavam previstas em 650 milhões e acabaram chegando perto de 2 bilhões com uma privatização no mínimo duvidosa no meio do processo. O mesmo se repete em outras obras, como o Mané Garrincha em Brasília (de 696 milhões para 1,7 bilhões). Um cientista político deveria saber que estas explosões orçamentárias não se devem a questões de engenharia e custo de materiais, mas a poderosos interesses de empreiteiras e outros que se locupletaram com a farra do boi das licitações de emergência (este sim um legado que vai ficar, como ficaram as obras do Pan).
Mas, como cabe ao discurso pequeno burguês, não se trata dos interesses reais de classe, mas do interesse maior: o da Nação. A pequena burguesia, disse Marx, inventou o conceito de Nação, porque ela própria fica pressionada entre os interesses reais das classes em luta e criou um espaço acima destes interesses mesquinhos, que a identifique com o povo e faça dela, a pequena burguesia, o legítimo interprete de seus verdadeiros anseios.
É por isso que os maldosos profetas do apocalipse ao atacar a copa e querendo atacar o governo, atacam o nosso Brasil. Diz o torcedor com diploma de doutor: “O pior dessa campanha fúnebre não é a tentativa de se desmoralizar governos, mas a tentativa de desmoralizar o Brasil”. Evidente que ia descambar para uma pregação nacionalista. Logo em seguida ela assume sua forma descarada:
“É claro que as informações deste texto só fazem sentido para quem as palavras ‘Brasil’ e ‘brasileiros’ significam alguma coisa [??]. Há quem por aqui nasceu, mas não nutre qualquer sentimento nacional, qualquer brasilidade; sequer acreditam que isso existe. Paciência. São os que pensam diferente que têm que mostrar que isso existe sim.”
A mágica da ideologia é apresentar o interesse particular como se fosse geral. Se o futebol espetacularizado e mercantilizado é meio de outros interesses – os dos grandes negócios não só dos jogos em si mesmos, mas dos gastos com as empreiteiras, a logística e uma infinidade de áreas de interesse do grande capital monopolista – ele se tornou também o meio pelo qual podem expressar-se as contradições e o descontentamento contra a fachada da imagem de sucesso que se projeta do caminho de pacto social escolhido. Não há um raciocínio simplista que acredita que um centavo gasto na Copa poderia ir para um hospital, é a critica absolutamente pertinente de que o caminho escolhido deixa soterrado contradições que mesmo invisibilizadas seguem existindo e pulsando. Queremos educação e saúde de qualidade, segurança, moradia, transporte e a opção escolhida de pacto com o grande capital condena estas áreas às sobras do prato principal servido ao capital financeiro e os generosos subsídios ao capital monopolista.
O que o articulista opina é que devemos separar as coisas. De um lado tem problemas no Brasil, mas a copa não tem nada a ver com isso. Sua cegueira é tamanha que lhe escapa o mais epidérmico do real. Existem cerca de 170 mil pessoas removidas por conta das obras da Copa, atingidas em seus mais elementares direitos humanos, sacrificados ao altar dos interesses das empreiteiras. Cinco trabalhadores da construção civil morreram nas obras, por causa da urgência, mas fundamentalmente das condições de trabalho, as mesmas precariedades já denunciadas nas obras do PAC. Eles tem nome: Marcleudo de Melo Ferreira de 22 anos, Raimundo Nonato Lima da Costa, 49 anos, José Afonso de Oliveira Rodrigues, de 21 anos, Fábio Luiz Pereira, 42 anos e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos.
As contradições são como a água que corre, sempre encontram um caminho para expressar-se. Nosso amigo está tentando parar o vazamento da represa com o dedo como aquele famoso caso do menino holandês. Seu dedo ideológico não é suficiente para deter a fúria das águas que ameaçam azedar a festa dos investidores e daqueles que queriam tirar dividendos políticos dos eventos.
Quando a represa estourar os sacerdotes do pacto pequeno burguês vão tentar encontrar alguém para botar a culpa (já começou no caso da lamentável morte do cinegrafista), mas a culpa certamente nunca é deles. Como dizia Marx:
“Como quer que seja, o democrata sai da derrota mais vergonhosa tão imaculado quanto era inocente ao nela entrar.” (O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, p.68).
É possível que o evento ocorra, até pela truculência da reação anunciada como a Portaria do Ministério da Defesa, mas vai ter que conviver como muita luta e manifestação. As patéticas iniciativas do governo de Dilma não chegaram nem perto dos graves problemas que estão na base desse fenômeno que explodiu em junho do ano passado. E não será agora que recuaremos.
Bom, vem aí o carnaval, esta outra festa popular que o povo cultua. Vai aí nossa contribuição no Bloco Comuna que Pariu que abrilhanta o carnaval carioca desde 2008. Para irmos esquentando os tamborins, aí vai nosso samba: A revolução foi a copa que pariu! E só para não esquecer: “NÃO VAI TER COPA!!!

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