por Martine Bulard
Seu tablet Galaxy a impulsionou ao topo do mercado, a ponto de ultrapassar a Apple. A Samsung e sua concorrente travam uma guerra sem piedade diante dos tribunais. Mas, para além da eletrônica, o grupo sul-coreano constitui um conglomerado tão potente que influencia a política, a justiça e a imprensa de seu país.
Impossível não percebê-la, mesmo no meio dessa floresta de prédios de vidro nos formatos mais mirabolantes – aqui, a originalidade é uma marca de distinção. A torre Samsung reina em pleno coração de Gangnam, um dos distritos mais chamativos de Seul, com suas avenidas gigantescas, seus carros de luxo e seus jovens descolados, que ficaram mundialmente conhecidos graças ao cantor Psy, no seu clipe Gangnam style. A Samsung Electronics apresenta ali, em três andares, suas invenções mais espetaculares: telas gigantes nas quais nos transformamos em jogadores de golfe ou campeões de beisebol; televisores 3-D; geladeiras com laterais e portas transparentes e dotadas de um sistema que pode propor receitas com base em seu conteúdo; espelhos com captadores que indicam nosso ritmo cardíaco, nossa temperatura... Sem esquecer, num lugar de destaque, a última joia do grupo: o smartphone Galaxy 4, lançado no mundo inteiro.
Essa é a face luminosa da Samsung. Neste fim de tarde de maio, dezenas de adolescentes se encontram aqui, já que a Universidade de Seul se situa a alguns quarteirões. Eles vão de um estande a outro, surpreendem-se diante das proezas, desafiam-se, interpelam-se. Todos com quem conversamos garantem que trabalhar na Samsung seria “o sonho”.
Uma observação que vamos ouvir com frequência. Pois não foi a Samsung que engoliu o peão do colosso norte-americano Apple e do japonês Sony? Não foi “o gigante do século XXI nas tecnologias mais avançadas”, como disse um jovem pesquisador recentemente empregado na Samsung Design, “templo da inovação? E a maior torre do mundo em Dubai? E a central nuclear de Abu Dhabi?”, pergunta meu jovem interlocutor, com um toque de ironia, pois a França perdeu essa concorrência. Samsung, Samsung de novo, sempre a Samsung...
O grupo estende seus tentáculos dos terrenos navais aos nucleares, da indústria pesada à construção imobiliária, dos parques de diversão aos armamentos, do eletrônico ao grande varejo, e até mesmo às padarias de bairro, sem esquecer o setor dos seguros e ainda os institutos de pesquisa. Ele é o que se chama na Coreia do Sul de chaebol– um conglomerado de empresas reunido em torno de uma companhia central –, sem equivalente no mundo.1
“Na Coreia do Sul”, precisa Park Je-song, pesquisador no Korean Labor Institute (KLI), “você nasce numa maternidade que pertence a um chaebol, vai para uma escola chaebol, recebe um salário chaebol– pois a quase totalidade das pequenas e médias empresas dependem deles –, vive em um apartamento chaebol, tem um cartão de crédito chaebole até mesmo seus lazeres e suas compras serão garantidos por um chaebol.” Ele poderia acrescentar: “você se elege graças a um chaebol”, já que esses mastodontes financiam indiferentemente a direita e a esquerda.
Existem uns trinta deles no país, entre os quais Hyundai, Lucky Goldstar (LG) e Sunkyung Group (SK), cada um propriedade de uma grande família tradicional. O mais poderoso é a Samsung, que opera nas novas tecnologias e cuida de sua imagem – o grupo gastou 9 bilhões de euros em marketing em 20122 – , mesmo que a saga familiar, com processos espetaculares, disputas fratricidas, corrupção e gastos suntuosos, faça o seriado norte-americano Dallas parecer um folhetim água com açúcar.
Sua história simboliza a evolução da República da Coreia, que passou de um status de país em desenvolvimento nos anos 1960 – atrás da Coreia do Norte, então mais industrializada – para 15ª economia mundial. O criador do grupo, Lee Byung-chul (1910-1987), começou de baixo, com um pequeno comércio que tinha como emblema três estrelas – samsung, em coreano. A lenda coloca a tônica em sua sensibilidade para o comércio, que lhe permitiu focar os bens de grande consumo (televisores, refrigeradores), depois os eletrônicos, ganhando assim seus títulos de nobreza – e enchendo seus caixas – na Coreia e no mercado ocidental. Ele legou sua fortuna a seus filhos, praticamente sem pagar impostos, e designou um deles, Kun-hee, para lhe suceder.
Fogueira de celulares
Este último desenvolveu o grupo ao ponto de alçá-lo ao primeiro lugar nas vendas de semicondutores (ele fornece para a Apple), de smartphones, de telas planas, de televisores, e ficar entre os primeiros em engenharia e química. O grupo se situa no vigésimo lugar mundial na lista da Forbes,3 apresentando um valor de negócios equivalente a um quinto do PIB da Coreia do Sul. Com uma riqueza pessoal avaliada em US$ 13 bilhões, Lee Kun-hee, 69ª fortuna mundial, é o homem mais rico do país.
A lenda omite o detalhe de que Lee Byung-chul iniciou seus negócios, em 1938, com o aval do ocupante japonês. Ela também não conta que o grupo se desenvolveu com a ajuda em dinheiro líquido do ditador Park Cheung-hee, que trouxe terrenos, financiamentos, impostos reduzidos e normas específicas para proteger o mercado interno. Puro produto da ditadura, a Samsung conserva belos traços desta.
Com 71 anos, o atual patrão “exerce um poder absoluto tanto sobre as orientações do grupo quanto sobre o pessoal”, garante Park Je-song, “mesmo detendo apenas uma ínfima parte do capital”: menos de 3%. Quando ele fala, todos obedecem sem hesitar. Em 1993, ele soltou para os funcionários: “Vocês devem mudar tudo, menos suas mulheres”. De um dia para o outro, produtos, métodos e administrações foram alterados. Essa famosa “reatividade ao mercado” é o sucesso do grupo e a lenda sobre seu chefe.
Dois anos depois, constatando a má qualidade dos telefones, Lee Kun-hee organizou uma gigantesca fogueira com 150 mil celulares, que viraram cinza diante dos trabalhadores perplexos. A imagem foi retransmitida em todas as fábricas, para mostrar que um trabalho malfeito não vale mais do que um monte de cinzas. O “defeito zero” se tornou a norma a ser respeitada, e o sentimento de culpa dos trabalhadores, um dogma.
Advogado renomado, Kim Yong-cheol trabalhou na secretaria geral da corporação, o que há de mais elevado, também chamado de Grupo Central para a Reforma (Reformation Headquarter Group). Ele conta que durante as reuniões com o grande chefe, que podem durar mais de seis horas, nenhum funcionário ousa beber um copo de água, por medo de precisar ir ao banheiro: Lee não suportaria. Ninguém pode falar sem sua autorização. Ousar emitir a menor dúvida não passa pela cabeça de ninguém. “É como um ditador. Ele ordena, nós executamos.”
Também para os fornecedores, não há outro caminho a não ser a submissão. Exímio conhecedor da Coreia do Sul, um dirigente francês de uma empresa do setor muito valorizado das instalações urbanas de luxo, que preferiu permanecer anônimo, confiou: “Para trabalhar aqui, é preciso ser nomeado. Não existe licitação ou concorrência. Tudo se baseia na confiança. Se a relação funciona, você deve ser inteiramente devotado ao grupo, obedecer completamente. A vantagem é que você pode inovar, mas sob sua proteção”. É impossível trabalhar para outro chaebol ou recusar uma encomenda. “São relações feudais”, acaba confessando. Outros fornecedores com menos prestígio podem ver seu ganho reduzido de maneira autoritária do dia para a noite ou serem cortados da lista.
O advogado Kim Yong-cheol viveu o sistema Samsung de dentro. Durante “sete anos e um mês”, precisa ele, colocou seu talento a serviço do grande homem e de suas práticas mais ou menos lícitas: dupla contabilidade, caixa dois para comprar jornalistas e políticos, contas secretas para uso pessoal, entre elas a da senhora Lee, grande amante da arte contemporânea. “Fiquei até o momento em que descobri que havia uma conta bancária em meu nome creditada com diversas dezenas de milhões de wons.”4
Ele pediu demissão em 2005. Dois anos depois, uma comissão de investigação foi iniciada. Lee Kun-hee foi condenado a três anos de prisão com liberdade condicional por fraude fiscal e abuso de confiança... antes de ser anistiado pelo presidente da República da época, Lee Myung-bak, ele mesmo antigo proprietário de uma filial da Hyundai. A atual presidente Geun-hye fez dele um de seus convidados de honra durante sua viagem aos Estados Unidos, em maio de 2013.
Foi demais para Kim Yong-cheol. Em 2010, ele escreveu com acidez e publicou Pensar Samsung,5 em que detalha os abusos da família e a corrupção até os mais altos escalões do Estado: “Eu devia dar a prova de que não estava mentindo”. Nenhum dos três grandes jornais, Chosun,Joongang e Donga –ouChojoodong, como nomeiam aqui esta imprensa de conveniência –, aceitou fazer publicidade do livro. Ninguém fez uma crítica. Todos estão ligados à Samsung pela publicidade, pelos envelopes espontaneamente depositados para os jornalistas ou por relações íntimas com a família. Apenas o Hankyoreh quebrou a lei do silêncio, o que acarretou no fim dos anúncios publicitários do grupo.
No entanto, as redes sociais fizeram que o livro fosse conhecido e se vendessem 200 mil exemplares. Belo sucesso nas livrarias, mas o advogado continua sem emprego. Ele teve de voltar para sua cidade natal, Gwangju, único lugar onde conseguiu encontrar um trabalho. Ele lamenta apenas uma coisa: “O debate público não aconteceu. A Samsung qualificou meu livro de ‘pura ficção’”. E o jogo continuou.
Mesma constatação do cineasta Im Sang-soo. Com seu filme L’ivresse de l’argent[A embriaguez do dinheiro],de 2012, ele escolheu desde o começo a ficção.6 Im descreveu com maestria o comportamento dos chaebols: a corrupção, a arrogância, o desprezo pelos funcionários, as disputas familiares e até o assassinato. “Os chaebolstransformam as pessoas em escravas. Eu devia desmontar seus mecanismos”, explica no escritório da sucursal coreana do Le Monde Diplomatique.7 No entanto, “o filme não foi um sucesso”. Silêncio midiático e recusa de difusão por parte das grandes salas de cinema. Para ele, “o mais decepcionante é que o filme nem sequer interessou à esquerda, pois ela não ousa atacar essa fortaleza. Ainda assim, existem duas dinastias na península: a Coreia do Norte com os Kim e a Coreia do Sul com os Lee”.
A imagem não é tão exagerada quando vemos a sorte destinada ao deputado do Novo Partido Progressista Roh Hoe-chan, que perdeu seu mandato em fevereiro de 2013 por ter tornado pública uma lista de personalidades corrompidas pela Samsung. Não qualquer lista: a que foi estabelecida pelos serviços secretos, que, por razões obscuras, tinham registrado conversas entre o patrão do grupo e o do jornal Joongang. Fala-se muito de dinheiro distribuído para muita gente importante: o vice-ministro da Justiça, um ou dois procuradores, diversos jornalistas, alguns candidatos às eleições.
Quando o caso começou a vazar, Roh reclamou e obteve uma comissão de investigação parlamentar que se apressou para abafar o escândalo. Apenas o vice-ministro da Justiça pediu demissão. Confiante em sua imunidade parlamentar, o deputado revelou essa lista durante uma coletiva de imprensa e, não tendo nenhuma ilusão a respeito das consequências, disponibilizou a lista em seu site. Porém, segundo a Corte Suprema, a imunidade termina... onde a internet começa. “Uma farsa”, comenta Roh. “Fui condenado, mas nenhum procurador foi investigado. Basta dizer que o filho do responsável do tribunal encarregado da investigação é funcionário da... Samsung. A Corte Suprema quis fazer de mim um exemplo. É inacreditável a quantidade de telefonemas de ‘amigos’ que recebi, querendo me dissuadir de levar adiante minha luta.” Sai de cena o deputado obstinado.
Não almoçar com sindicalista
Também os sindicalistas têm direito à mordaça. Um dos porta-vozes do grupo, Cho Kevin, desmente qualquer tipo de caça às bruxas. Ele nos informou por e-mail (é mais fácil encontrar um ministro ou um deputado do que um representante da Samsung): “Existem sindicatos em muitas de nossas filiais, e o grupo respeita o direito ao trabalho, assim como as normas éticas”. Sindicatos da casa, sim; mas não a Confederação Coreana dos Sindicatos (Korean Confederation of Trade Union, KCTU), cujo ancestral teve um papel decisivo no fim da ditadura nos anos 1980. Supressões, demissões, ameaças, chantagem: a direção não poupa meios, se acreditarmos no estudo realizado pelo professor Cho Don-moon, sociólogo da Universidade Católica da Coreia.8 Até 2011, apenas um sindicato era autorizado na empresa, e ele devia se registrar junto à administração pública. Assim que a papelada chegava, o funcionário avisava a direção da Samsung, que podia sequestrar o impetrante por diversos dias, tempo durante o qual ela podia criar seu próprio sindicato na usina. A partir de janeiro de 2011, o pluralismo sindical foi reconhecido, mas a KCTU continua sendo o inimigo.
Encontramo-nos com seis membros, com idade entre 30 e 50 anos. Todos trabalham na Samsung, na região de Ulsan, a duas horas e meia de trem-bala a sudeste de Seul. Mas para encontrá-los é preciso dar voltas e mais voltas até um albergue coreano tradicional, rodeado por flores e árvores, na beira de um lago, longe de suas casas, a fim de que eles permaneçam anônimos. O local é mais charmoso do que a vizinhança das fábricas, onde eles produzem baterias de telefones celulares, telas de cristal líquido e aquecedores solares. E principalmente mais discreto: “É muito perigoso encontrar uma jornalista – ainda mais estrangeira”, explicam. Sindicalizados na KCTU, eles vivem em semiclandestinidade.
Todos são catalogados como “MJ”, de moon jae, transcrição fonética em alfabeto ocidental do coreano “problema”. “Em cada setor”, conta um deles, “há pessoas encarregadas de encontrar os MJs, assediá-los, comprá-los, impedir a ‘contaminação’.” Um de seus colegas continua: “Se uma pessoa por acaso bebe uma cerveja com um MJ numa festa, ela é imediatamente convocada pela direção, que pergunta o que ela ouviu e o que disse. Até na cantina é pouco recomendado comer na companhia de um MJ”.
Toque de recolher
Chovem sanções: apenas um desses sindicalistas manteve seu trabalho no grupo. Um foi transferido para um escritório onde se ocupa, sozinho, das obras de caridade da fábrica. Outro foi mandado para um serviço de fornecimento bem supervisionado. Uma pergunta sobre a atividade do quarto provoca risos gerais: “Nada, eu não faço nada, literalmente. Antes, eu era operário; agora, fico em um escritório, sozinho, sem nenhuma função”. Ele ri, mas teve de consultar um psiquiatra. Para seu colega, que acabou de se filiar ao sindicato, a direção propôs um “estágio obrigatório” de diversos meses na... Malásia. Ele recusou; está esperando a sanção. Quanto ao sexto, ele foi demitido há quatro anos. Sem recursos.
Encontramos outros MJs. Em Suwon, a sede da Samsung, na periferia de Seul. Cho Jang-hee, ex-administrador de um restaurante no parque de diversões Everland, teve a audácia de criar com três de seus colegas um sindicato filiado à KCTU. Todas as tentativas precedentes tinham fracassado – alguns envolvidos receberam uma promoção ou dinheiro para pagar os estudos dos filhos, outros cederam às pressões. “De repente, os colegas não têm mais coragem de olhar para você, eles não falam mais com você”, explica Cho. “Existem até ‘sessões de formação’ durante as quais os chefes explicam que somos bandidos que colocam a empresa em perigo.” Eles foram seguidos 24 horas por dia e filmados. Seus telefones foram grampeados, seus familiares, ameaçados. Mas se mantiveram firmes.
Evidente, sua influência é marginal: onze aderentes “abertos” e 68 clandestinos, entre 10 mil assalariados. Não chegam nem perto de ser eleitos para representar os funcionários nas comissões paritárias inventadas pelo grupo para contornar os sindicatos e compostas metade de pessoas da direção e a outra metade de representantes dos trabalhadores altamente recomendados pela direção. Mas pela primeira vez a KCTU tem uma existência legal, se não reconhecida, dentro da Samsung. Cho pagou caro por isso: foi demitido. Quanto aos dois outros cofundadores, eles foram suspensos por três meses e transferidos para dois restaurantes diferentes, “para isolá-los bem”.
Tanto em Ulsan quanto em Suwon, esses sindicalizados reconhecem que, para eles, trabalhadores em tempo integral, “os salários são corretos”. Por outro lado, os funcionários sem contrato recebem entre 40% e 60% a menos por um trabalho muitas vezes idêntico, não possuem nenhuma proteção, nenhum bônus, e são mandados embora assim que as encomendas diminuem.9 Sejam funcionários diretos da Samsung ou empregados pelos fornecedores, eles representam segundo as estimativas (as estatísticas oficiais não existem) entre 40% e 50% dos efetivos. Já os que têm mais de 50 anos, incluindo aqueles que ocupam cargos de chefia, são ardentemente convidados a se demitir, pois custam muito caro. Para todos, as condições de trabalho são difíceis, as amplitudes de horário desmedidas, as tensões fortes, os acidentes numerosos. Em janeiro de 2013, um funcionário sem contrato morreu depois de um vazamento de ácido fluorídrico na fábrica de Hwasung, perto de Suwon.
Vista de fora, nada indica o menor perigo nessa unidade. Preocupado com o decoro, Lee Kun-hee construiu com cuidado sua digital city (cidade digital), que se estende por três comunas, Hwasung, Giheung e Onyang. A sábia reunião de grandes cubos de um branco puro, de prédios de vidro elegantes e de um gramado bem cuidado faz pensar num campusuniversitário. A cada extremidade, dormitórios: os das moças são imponentes, pois as “operadoras” são mais numerosas. Mais distante, o dos rapazes, encarregados da manutenção e do fornecimento. Vindos de todo o país, esses jovens fabricam semicondutores.
Todos os anos, os executivos da Samsung partem à caça. Eles vão ao encontro dos colegas do interior a fim de coletar novas recrutas, e fica a cargo dos orientadores fazer a pré-seleção. Todos dizem o mesmo: há mais demanda que oferta. A Samsung goza de uma bela reputação, e os salários são relativamente altos: o equivalente a 2 mil euros, uma fortuna para quem está começando (o salário mínimo não ultrapassa 600 euros). “Trabalhando na Samsung”, testemunha uma funcionária, “posso ajudar meus pais e preparar meu casamento.”
Mas os sonhos de menina frequentemente se evaporam nas salas brancas de produção. Visto de fora, tudo parece higienizado com suas “operadoras” com aparência de astronautas, vestidas de branco da cabeça aos pés, apenas com os olhos de fora. Imaginamos que são locais altamente seguros. No entanto, esse cenário futurista dissimula práticas medievais.
É preciso trabalhar ao menos doze horas por dia; participar das atividades de caridade a fim de desenvolver o espírito de solidariedade, é o que diz a administração; depois, eventualmente, voltar ao trabalho antes de dormir. Seis dias por semana. No sétimo, as trabalhadoras estão tão cansadas que dormem lá mesmo e raramente visitam a família. “Levantamo-nos na Samsung, comemos na Samsung, trabalhamos na Samsung, nos divertimos na Samsung, dormimos na Samsung”, resume Kab-soo, feliz de ter saído depois de juntar um pequeno pé de meia e encontrado outro emprego um pouco menos duro.
Claro, essas jovens têm o direito de sair à noite. “Não estamos na China”, replica, um pouco ofendido, um ex-executivo do grupo. No entanto, ele reconhece, isso não é muito bem-visto. E se, por descuido, elas voltam depois do toque de recolher (meia-noite), recebem um “cartão vermelho” que só será apagado quando elas tiverem participado devidamente das atividades de caridade da casa.
O cansaço é tamanho que as indisciplinas são raras. No entanto, encapuzadas em sua fantasia de bunny, as trabalhadoras resistem a essa robotização. Proibidas de usar maquiagem, elas colocam cílios postiços. Cobertas até os olhos pelo capuz regulamentar, elas encontram maneiras elegantes de usá-lo, conta Lee Kyung-hong, jovem cineasta documentarista que as filmou durante três anos...10 depois que saíram da empresa, pois são totalmente proibidas de falar a respeito enquanto estão empregadas.
São suas únicas fantasias. “Trabalhamos com medo”, lembra Kab-soo. Medo de errar. Medo de não conseguir. Medo de ficar doente. A fábrica de semicondutores necessita de grandes quantidades de produtos químicos, gases extremamente perigosos, campos eletromagnéticos. As operárias devem mergulhar suas placas em diversos banhos com grande rapidez, não se enganar, verificar...
Violações da segurança no trabalho
No papel, as normas de segurança existem. Mas, na unidade de Hwasung, já houve dois vazamentos de gás entre janeiro e maio de 2013. Os sistemas de ventilação não funcionam sempre. Frequentemente as próprias operadoras abrem as válvulas de radioatividade para irem mais rápido e cumprirem sua missão. Sem serem pagas por unidade, elas se sentem responsáveis pelo resultado comum.
Nesse ritmo, elas não aguentam mais do que quatro ou cinco anos. Depois, encontram outro emprego ou voltam para a casa dos pais e se casam – apenas 53,1% das mulheres trabalham.11 Algumas acabam morrendo. Em 2007, a jovem Hwang Yumi, na época com 22 anos, faleceu depois de quatro anos de trabalho na unidade de Giheung. Seu pai, Hwang Sang-gi, taxista em Dokcho, a duas horas e meia de carro de Seul, se lembra de cada instante do câncer que a devorou por longos meses. Ele se tornou um símbolo. Ainda que, segundo sua expressão, “não fale tão bem quanto os burocratas da Samsung” e mesmo recebendo ameaças e ofertas financeiras para se calar, ele nunca abandonou a luta. Ele quer que o câncer de sua filha seja reconhecido como uma doença profissional não apenas pela administração – o que já aconteceu –, mas também pela Samsung, que continua negando. No caso de Yumi, assim como no de todos que ainda estão morrendo.
A primeira que lhe deu ouvidos foi a advogada Lee Jong-ran. Ela não se cala sobre os danos provocados por esse concentrado de substâncias perigosas. “Os fabricantes dizem que não há nada a temer, mas nenhum quer dar a lista exata dos produtos utilizados, em nome do ‘segredo de fabricação’. E os jovens morrem em segredo.” Com o doutor Kong Jeong-ok e a associação Supporter for the Health and Rights of People in the Semiconductor Industry (Sharps), ela recenseou 154 doentes sofrendo de diversas condições (leucemia, câncer de mama, esclerose múltipla...) desde março de 2012, dos quais 137 são ex-funcionários da Samsung. Para muitos especialistas do grupo, essas doenças profissionais são um segredo conhecido por todos. Foram necessários, no entanto, os vazamentos de gás tóxico em Hwasung, a dez minutos das residências de luxo no entorno de Suwon, para que alguns começassem a se preocupar e para que a direção prometesse tomar providências...
Mas quando, depois de meses e meses de procedimentos para que fosse examinado um caso preciso, a agência pública de indenização designada pelas autoridades finalmente entrou em funcionamento, ela convocou um médico... da Samsung.12
BOX:
Ficha de Identidade
Valores de negócios: R$ 537 bilhões.
Lucro líquido: R$ 40 bilhões.
Funcionários: 369 mil pessoas,
das quais 40 mil pesquisadores.
Parte das vendas mundiais de celulares: 29% (22% para Apple).
Principais filiais: Samsung Electronics (telefones celulares, semicondutores, telas de LCD, aquecedores solares...), Samsung Heavy Industries (construção naval, plataformas petroleiras), Samsung Techwin (armamento), Samsung Life Insurance (seguros), Everland (parques de diversão), The Shilla Hotels and Resorts, Samsung Medical Center, Samsung Economic Research Institute.
Principais países de atuação fora da Coreia do Sul: China (montagem de telefones celulares), Malásia, Vietnã.
Fontes: Relatório oficial da Samsung, IDC Worldwide Mobile Tracker 2012.
8Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).
Ilustração: Alves
.
1 Ler Laurent Carroué, “Les travailleurs coréens à l’assaut du dragon” [Os trabalhadores coreanos no que do dragão], e Jacques Decornoy, “Délicate fin de guerre dans la péninsule de Corée” [Delicado fim de guerra na Península da Coreia], Le Monde Diplomatique, respectivamente fev. 1997 e nov. 1994.
2 Benjamin Ferran, “Samsung a dépensé 9 milliards en marketing” [A Samsung gastou 9 bilhões em marketing], Le Figaro, Paris, 14 mar. 2013.
4 1.000 wons representam cerca de R$ 1,90.
5 Apenas em coreano.
6 Disponível em Wild Side Video, Paris.
7 Ler a entrevista no site .
8 Cho Don-moon, “A estratégia antissindical da Samsung.História da luta dos trabalhadores pela criação de um sindicato”, estudo (em coreano), 2012.
9 Cf. Jean-Marie Pernot, “Corée du Sud: des luttes syndicales pour la démocratie” [Coreia do Sul: lutas sindicais pela democracia], Chronique Internationale de L’Ires, n.135, Paris, mar. 2012.
10 Lee Kyung-hong, L’empire de la honte [O império da vergonha], Purn Production, Seul, 2013.
11 A média para os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 56,7%.
12 “South Korean government rejects Samsung victim’s workers compensation based on Samsung doctor’s opinion” [Governo sul-coreano rejeita compensação a trabalhadores vitimados da Samsung baseado na opinião de médico da Samsung], Sharps, 31 maio 2013.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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