por Movimento #OcupeEstelita
Há alguns anos, Recife passa por um processo agressivo de transformação urbana. Nos acostumamos com o surgimento de um novo espigão em cada esquina: bairros formados tradicionalmente por casas mudam de maneira drástica com a demolição destas para a construção de prédios compridos.
“Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias (felizes ou infelizes), mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por ela cancelados”.¹
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Há alguns anos, Recife passa por um processo agressivo de transformação urbana. Nos acostumamos com o surgimento de um novo espigão em cada esquina: bairros formados tradicionalmente por casas mudam de maneira drástica com a demolição destas para a construção de prédios compridos. Comunidades inteiras são desalojadas sem o mínimo planejamento social. O que antes era uma rua de quintais, terraços e jardins, hoje é uma paisagem inóspita de muros altos, fachadas espelhadas e muitas vagas na garagem. Com a conivência do poder público, multiplicam-se os projetos imobiliários que visam apenas a geração de lucros e ignoram a dimensão humana. Assistimos à transformação do Recife amarelado de Renato Carneiro Campos, do Recife de cadeiras na calçada de Manuel Bandeira, do Recife cheio de gente de Alcir Lacerda, numa metrópole em que progresso contradiz identidade. Vemos a reprodução de um modelo de desenvolvimento urbano que espelha o fracassado sucesso de grandes cidades feitaspara poucos, como Dubai ou Miami: as grandes construtoras dominam o nosso solo, capitalizando a paisagem e segregando a urbe.
Em 2008, quatro dessas grandes construtoras (Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentose GL Empreendimentos) juntaram-se em torno do Consórcio Novo Recife e adquiriram a posse de uma área de 100 mil m2, no Cais José Estelita, no centro histórico do Recife, por R$ 55 milhões. O terreno foi arrematado num leilão ilegal pelo lance mínimo e com proposta única. As ilegalidades da compra são múltiplas, pois desconsidera, entre outras coisas, o interesse expresso da União em manter a posse da área e a necessidade prévia de loteamento do terreno para definição de vias públicas e garantir a possibilidade de haver mais de um comprador, devido o tamanho da área. Em 2012 foi proposto pelo consórcio um projeto que prevê a construção de 12 torres, de até 45 andares, divididas em cinco quadras, protegidas por muro de cinco metros de altura. De frente para o rio Capibaribe, próximo ao mar, o projeto não possui estudo de impacto ambiental nem estudo de impacto de vizinhança, mesmo com a previsão de mais de cinco mil vagas de estacionamento. Além disso, desconsidera a função social da propriedade prevista na constituição e não possui autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Desde o anúncio do Novo Recife, a sociedade civil tem se mobilizado através de manifestações, participação em audiências públicas e articulação de forças jurídicas. Atualmente, cinco ações públicas contra o Novo Recife estão sendo analisadas no Supremo Tribunal de Justiça.
Na noite do último dia 21, contudo, a notícia se espalhou nas redes sociais e tomou todo mundo no susto: apesar das ações ainda não terem sido julgadas, os armazéns de açúcar que compõem a área em questão estavam sendo demolidos. Sérgio Urt, um dos ativistas articuladores do #OcupeEstelita foi o primeiro a chegar. Enquanto tirava fotos da demolição, foi abordado por seguranças das construtoras do consórcio que o agrediram, tomaram o seu aparelho celular e devolveram tempos depois com todas as imagens apagadas. Outras pessoas chegaram no local ao longo da noite e desde então, num fluxo intenso de manifestantes, permanecemos acampados no Cais José Estelita. No dia seguinte, (22/05) o Iphan emitiu um parecer que embargava a demolição.
“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio-condutor de seu discurso seja secreto, que suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outra coisa”.²
Desde o primeiro #OcupeEstelita, em abril de 2012, nossa proposta é lutar pelo direito à cidade, questionando a exclusão popular em decisões que afetam de maneira tão drástica a vida de tantos recifenses. Lutamos, principalmente, pelo direito de discutir o espaço urbano que queremos construir. Somos um movimento de liderança horizontal, popular e suprapartidário. Nossa luta se sobrepõe a de qualquer partido: acreditamos que política é feita com ação, formação, discussão e manifestação. A ocupação do terreno do Cais José Estelita, que agora se vê ameaçada pelo mandado de reintegração de posse, é pacífica. Ocupamos para garantir o cumprimento da lei.
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O movimento #OcupeEstelita é encabeçado pelo grupo Direitos Urbanos, formado por mais de 20 mil pessoas e crescendo a cada dia no facebook, com a participação de outras organizações da sociedade civil. Arquitetos, engenheiros, artistas, professores, médicos, jornalistas, estudantes, todos discutem juntos os caminhos para a construção de um espaço urbano democrático e inclusivo. Reivindicamos para área do Cais José Estelita um projeto de uso misto, com área comercial, de lazer e residencial, destacando 30% das moradias para habitação popular. Desejamos ainda construções que se integrem de maneira coesa com a paisagem e a dinâmica daquela região, respeitando os patrimônios históricos tombados e integrando as comunidades vizinhas ao Cais.
O apoio tem chegado de diversos lados. Descobrimos que o sonho de uma cidade mais humana é compartilhado com multidões. Desde a noite da quarta-feira, 21, a ocupação continua a existir por conta da doação de alimentos, água e outros materiais. Ela resiste, acima de tudo, pela força e garra daqueles que permanecem dias e noites morando no acampamento, unidos pela crença na construção de uma outra cidade. Diariamente realizamos no Cais aulas, oficinas, workshops e shows, integrando o espaço com o resto do Recife e promovendo uma apropriação afetiva daquela paisagem por parte da população.
“Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve”.³
Entretanto, a grande mídia pernambucana, com poucas exceções, tem limitado-se a fazer uma cobertura medíocre e, em determinados momentos, tendenciosa do #OcupeEstelita. É notória a restrição ao assunto imposta pelos jornais, em que as construtoras são hoje importantes anunciantes: a reprodução da lógica feudal da aristocracia açucareira ainda nos assombra. Como veículo de propagação das nossas ideias e ações, somos então amparados pelas mídias alternativas e pelas redes sociais. É dessa forma que pretendemos fazer o nosso grito ecoar para pressionar a abertura de uma via de diálogo com o poder público e com o consórcio Novo recife. Queremos discutir o futuro do Recife. Queremos ter voz na construção da nossa cidade. O direito à discussão não nos pode ser negado.
Em todas as declarações públicas, o prefeito Geraldo Júlio (PSB), cuja campanha eleitoral recebeu doação de R$ 1, 35 milhões das construtoras que compõem o consórcio, procura eximir-se da responsabilidade que lhe cabe como atual chefe do executivo, culpabilizando as gestões municipais anteriores ao seu mandato pelas decisões que tornaram possível a existência do projeto Novo Recife. Mas as novas ações mitigatórias propostas pelo prefeito ao consórcio também não contaram com participação popular em sua formulação. Além disso, Geraldo poderia usar de suas prerrogativas para reabrir a discussão para apreciação do processo e determinar o cumprimento das exigências legais. Nem ele, nem o seu padrinho político, o ex-governador de Pernambuco e presidenciável Eduardo Campos (PSB), parecem dar a devida atenção a uma das mais importantes mobilizações sociais recentes do Recife. Há mais de um ano redigimos uma carta para o prefeito que contabiliza mais de 13 mil assinaturas e ainda não tivemos a oportunidade de entrega-la pessoalmente.
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“De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou sessenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas”.4
As frases entre aspas que permeiam este texto são trechos de Cidades invisíveis, obra-prima de Ítalo Calvino. O livro narra a conversa em que o explorador Marco Polo descreve para o imperador mongol Kublai Khan as cidades que se espalham pelo território de seu império. A partir dessa premissa Calvino constrói, em prosa poética, imagens de cidades que podem ser desenhadas em qualquer urbe, em todas as urbes.
Recife é várias cidades. A luta do movimento #OcupeEstelita é para não tornar invisível a cidade que acreditamos e que parece estar sufocada entre paredões espelhados. Falamos pelos que não se sentem contemplados com o modelo de desenvolvimento urbano que tem regido nossa capital. Afinal, se a paisagem é uma extensão do homem, nós somos a cidade. Cada um de nós. Ocupamos para continuar sendo cidade e resistimos pelo Recife que fomos, somos e queremos ser.
#OcupeEstelita
#ResisteEstelita
Movimento #OcupeEstelita
#OcupeEstelita é um Movimento criado em Pernambuco que luta contra especulção imobiliária
1, 2, 3 e 4 - CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990
Fonte: Le Monde Diplomatique
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