TRÊS ORIGINALIDADES E UM VELHO CAMINHO
Mauro Luis Iasi*
Resumo: Análise da trajetória da Revolução Cubana tomando como hipótese três aspectos particulares que atribuem a esta experiência histórica sua originalidade e a reflexão sobre elementos de sua universalidade como manifestação histórica fundada na concepção socialista e nos pressupostos marxianos.
Quando comemorarmos os 50 anos da Revolução Cubana torna-se necessário refletir sobre sua trajetória, seus ensinamentos e impasses. Devemos alertar inicialmente que em se tratando da Revolução Cubana, ainda que como em toda a análise devamos preservar a necessária objetividade, nos é impossível qualquer tipo de neutralidade. Assim, acompanhamos Mario Benedetti reafirmando que seremos totalmente parciais e, mais que isso, apaixonados, pois cremos que, assim como vimos em Cuba, paixão e revolução são inseparáveis.
A história da Revolução Cubana nos permite identificar três originalidades que lhe conferem um aspecto singular no cenário das revoluções do século XX, mas, ao mesmo tempo, ela é a comprovação de pressupostos e caminhos universais que a luta dos povos vem construindo, teórica e praticamente, há tanto tempo.
Seguindo as pistas de Che Guevara, quando busca compreender se há ou não uma excepcionalidade nos caminhos trilhados pelos revolucionários cubanos, concordamos que as características específicas de Cuba também lhe permitem uma profunda identidade com as demais formações sociais1, fundamentalmente aquelas de nosso continente. Aqui, no entanto, gostaria de começar por destacar três elementos ligados aos caminhos escolhidos no que tange à Revolução e à transição socialista.
PRIMEIRA ORIGINALIDADE: QUANTO À VIA REVOLUCIONÁRIA
O primeiro aspecto que gostaria de destacar diz respeito à via revolucionária, ou seja, o caminho de objetivação da estratégia e suas vinculações táticas. O pano de fundo desta polêmica se relaciona, ao mesmo tempo, com os elementos da realidade cubana e o debate das experiências revolucionárias vitoriosas, ou seja, a Revolução Russa e a Revolução Chinesa.
Toda grande revolução deixa uma marca e se torna uma referência. É natural, portanto, que os revolucionários procurem seguir seus passos e, muitas vezes, de maneira mecânica. Assim surgem modelos. Esquematicamente podemos resumir para fins desta exposição nas consagradas fórmulas do chamando modelo Petrogrado, ou seja, uma insurreição baseada nos principais centros urbanos/industriais e na classe operária que, se aliando aos camponeses, logra a tomada do poder; e a Guerra Popular Prolongada que partindo das lutas e guerrilhas no campo se transforma em um Exército Popular e toma as cidades, cercando-as.
Cuba tinha uma grande tradição de greves e insurreições, assim como de luta armada, como as duas guerras de independência. Com a montagem do grupo guerrilheiro na Sierra
Maestra e a organização de resistência construída pelo M26 nas cidades, abre-se o debate a respeito do núcleo estratégico e da via, isto é, uma greve geral que leva a uma insurreição apoiada pelo braço armado guerrilheiro, ou uma ação ofensiva da guerrilha apoiada pela resistência urbana que deflagraria uma greve geral. Tal polêmica que contrapunha os chamados setores da planície e da sierra expressava o debate entre as alternativas soviética e chinesa. A primeira originalidade que destacamos é que a polêmica se resolve de maneira criativa.
A Revolução Cubana não é uma mera cópia de nenhum dos dois modelos, mas antes uma síntese. A mera greve geral insurreicional não seria capaz de derrotar Batista, como se comprovou na tentativa de 1958. Da mesma forma a mera transposição da Guerra Popular Prolongada seria inviável nas condições cubanas, pelas dimensões do território, pela presença próxima do imperialismo e outros fatores. A saída foi uma criativa combinação entre a ação da guerrilha, a formação das áreas liberadas no oriente, a resistência urbana e a frente de revolucionária conseguida através de um amplo leque de alianças, que culminou, simultaneamente na ofensiva militar e a insurreição que levaria à vitória de janeiro de 1959.
DIREÇÃO REVOLUCIONÁRIA, ALIANÇAS E PRINCÍPIOS
A segunda originalidade diz respeito a direção revolucionária, sua forma de condução política da luta, incluindo aí a questão das alianças e, na seqüência, a firmeza estratégica que leva da superação do momento da revolução democrática à construção socialista.
O protagonismo do M26 desde sua formação após o assalto ao quartel Moncada, a preparação e a montagem do núcleo guerrilheiro na Sierra Maestra é inquestionável. No entanto, no curso da luta contra Batista os revolucionários, sem que perdessem o protagonismo, tornaram possível uma frente bastante ampla que não apenas atraiu os outros partidos progressistas, como o PSP (nome legal do Partido Comunista), o Diretório Estudantil Revolucionário e outros, mas setores da própria burguesia cubana e mesmo de latifundiários.
Este caminho não se deu sem tensões e mesmo polêmicas, por exemplo, a que opôs Fidel a Che quando das negociações com empresários e o compromisso firmado na Venezuela. O fato é que a ação política do M26 isolou o ditador e criou as condições políticas da vitória. Mas é aí que entra a verdadeira originalidade da revolução cubana e que a diferencia das muitas tristes e trágicas experiências que presenciamos em nosso continente.
Logo após a vitória em janeiro de 1959 se forma um governo tendo a Frente Urrítia e Cardona, dois políticos democráticos e que mantinham boas relações com a burguesia cubana e os EUA, defendendo uma solução de compromissos e responsabilidade. Fidel se encontra em Santiago e faz uma lenta e longa marcha na qual repete seu discurso segundo o qual a Revolução começaria agora e chegava ao poder sem compromissos com ninguém a não ser com o povo que era o único dono da vitória. Contra as propostas moderadas, impôs o programa de Moncada, a reforma agrária (começando pelas terras de sua própria família), a reforma urbana e, depois, a nacionalização das empresas estrangeiras, leia-se, norte americanas.
Em tempos como os nossos onde candidatos se esquecem de seus princípios no caminho entre as urnas e o palácio do governo e contentam-se em se manter nos limites da ordem abandonando as verdadeiras demandas revolucionárias que por ventura um dia os moveram, esta é uma característica excepcional da revolução Cubana.
A ORIGINALIDADE NA CONSTRUÇÃO DA TRANSIÇÃO SOCIALISTA
A terceira originalidade se relaciona à transição socialista e seus problemas. Uma vez consolidada a vitória, não sem dificuldades como mostra a brutal reação do imperialismo desde as sabotagens até a tentativa de invasão pela Baia dos Porcos em 1961, reapresenta-se a polêmica dos modelos, agora aplicados não mais à via, mas a condução da economia. Recordemos que no início da década de sessenta ocorre o rompimento entre URSS e China, o que agrava o debate.
Neste momento delicado a direção revolucionária soube manter uma postura extremamente correta e como afirmou Fidel em seu discurso de fundação do PCC, “não perguntamos a ninguém como deveríamos fazer a revolução e a fizemos e não perguntaremos a ninguém como deveremos levá-la à frente e levaremos”; e alertava que “ninguém pode nos dividir se não deixarmos que as divergências que dividem o campo socialista nos atinjam”. Na mesma oportunidade Fidel lembrava que o marxismo é uma doutrina feita por revolucionários para revolucionários e não uma propriedade privada registrada em nenhum cartório, completando: “aqueles que derem interpretações corretas e as aplicarem conseqüentemente triunfarão, aqueles que não o fizerem fracassarão”.
Esta postura de independência que marcaria a posição de Cuba no cenário internacional refletiu-se internamente de maneira muito significativa e neste episódio a figura de Che Guevara é essencial. Começando pela própria construção do Partido.
Quando da criação do Partido Unido da Revolução Socialista, ainda em 1961, certos dirigentes de partidos já estruturados defendiam a idéia de que se mantivesse a hierarquia anterior, ou seja, alguém que fosse da direção de um partido ou organização que compunha a frente tornar-se-ia dirigente do Partido Unido. Che contrapõe a esta tese a proposta de criação das ORIs (Organizações Revolucionárias Integradas) que deveriam ser compostas a partir dos locais de trabalho e comitês de defesa de quadra e os quadros que integrariam o partido e suas direções deveriam ser indicados pelos trabalhadores entre aqueles que estes considerassem os mais capazes e firmes.
Além desta importante questão da organização a grande originalidade na construção socialista vem da discussão sobre a forma de organização da economia. Che, nesta época no Ministério, faz um profundo estudo sobre as experiências socialistas, inclusive viajando a vários países e conversando com dirigentes e trabalhadores. O comandante chega a uma conclusão de transcendental importância. Em suas palavras:
Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com os meios falhos que nos legou o capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca, etc.) se pode chegar a um beco sem saída. E quando se chega aí depois de percorrer uma longa distância na qual os caminhos se entrecruzam, muitas vezes é difícil perceber o momento que perdemos o caminho. Entretanto, a base adaptada já terá feito seu trabalho de sabotagem sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material temos que produzir o homem novo (GUEVARA, s/d, p. 273).
E completa:
Não se trata de quantas gramas de carne se come ou quantas vezes por ano alguém pode ir à praia, nem de quantas belezas que vem do exterior possam ser compradas com os salários atuais. Trata-se, precisamente, que o indivíduo se sinta mais pleno, com muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade (p. 282-283).
Tais constatações levaram o comandante a propor um sistema que chamava de presupostário e que, em síntese, procurava superar a forma mercantil na relação entre empresas socializadas e mais adiante tentou, numa experiência piloto na Isla de la Juventud, uma forma de sociabilidade na qual recuperava-se o valor de uso e abolia-se o dinheiro como forma de equivalente. É neste contexto que devemos entender a proposta guevariana a respeito da superioridade dos incentivos morais sobre os materiais. Não se trata de uma formulação meramente ética ou romântica, pelo contrário, sua posição remete a necessidade de considerar as transformações de consciência como força material no desenvolvimento das forças produtivas. Polemiza Che:
Se, o estímulo material se opõe ao desenvolvimento da consciência, mas é uma grande alavanca para obter resultados na produção, devemos entender que a atenção preferencial ao desenvolvimento da consciência atrasa a produção? Em termos comparativos em uma época dada, é possível, ainda que ninguém tenha realizado cálculos pertinentes; afirmamos que em tempo relativamente curto de desenvolvimento da consciência o desenvolvimento da consciência faz mais para o desenvolvimento da produção que o estímulo material e o fazemos projetando o desenvolvimento da sociedade socialista em direção ao comunismo, o que pressupõe que o trabalho deixe de ser uma penosa necessidade para converter-se em um agradável imperativo (GUEVARA, s/d, p. 191).
Destacando que o fundamento ético da proposta de Che é a materialidade das relações, tal raciocínio não deixa de ser moral, porém esta se altera substantivamente não apenas como meta ideal, mas, fundamentalmente como caminho. Não é uma mera afirmação de princípios, é uma poderosa crítica aos caminhos escolhidos pelas sociedades que ensaiavam a transição socialista. A transição socialista é, simultaneamente, composta de mudanças materiais e nas relações sociais que tanto impulsionam alterações na consciência, como são impulsionadas por estas alterações.
O socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa, dizia Che. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo lutamos contra a alienação. Um dos objetivos fundamentais do marxismo é fazer desaparecer o ‘interesse individual’ e também, das motivações psicológicas. Marx se preocupava tanto com os fatos econômicos como sua tradução na mente. Ele chamava isto de ‘fatos de consciência’. Se o comunismo descuida dos fatos de consciência pode até se tornar um método de distribuição, mas deixa de ser uma moral revolucionária (DANIEL, 1987, p. 45).
A tragédia é que em Cuba se gestavam as condições para que esta constatação ocorresse, pelo desenvolvimento da experiência socialista até então, mas as condições materiais para superar as determinações materiais que se encontram na base do fenômeno detectado, em Cuba, se encontravam ainda menos desenvolvidas que em outras formações sociais que trilhavam o caminho da transição socialista. Isso explica o desenvolvimento futuro das escolhas econômicas na ilha revolucionária e os problemas práticos encontrados na execução, naquele momento, do pensamento econômico de Che.
Entretanto, estas reflexões não deixaram de fincar suas marcas na experiência cubana, desde as formas de organização nos locais de trabalho, nas formas de gestão e mesmo, e talvez fundamentalmente, nos processos políticos que culminaram na experiência de Poder Popular iniciada a partir de 1974, depois estendida em 1979.
UM ÚLTIMO ELEMENTO ORIGINAL
O conjunto destas originalidades implica na singularidade da experiência cubana, mas há um outro elemento, mais difuso e difícil de ser compreendido por observadores desatentos, que se potencializou por estes aspectos descritos, mas em grande medida também podem explicá-los. Este elemento é a dignidade. Não que exista alguma essencialidade ou caráter nacional, ou qualquer uma destas metafísicas, trata-se de um traço cultural e histórico e, em grande medida, construído pela revolução.
A exploração colonial, a escravidão e o racismo, as opressões da riqueza e do domínio imperialista, costumam impor traços de subserviência e servilismo. O fato de a história de Cuba ser marcada por duas guerras de independência, a primeira levando à abolição da escravidão e a segunda a independência em relação à Espanha, a luta guerrilheira contra Batista, produzem uma alteração significativa que reverte servilismo em rebeldia. Como não há essência humana fora daquela que os seres humanos constroem através de sua ação histórica, a rebeldia levou a emancipação de uma dignidade rara de se encontrar entre nossos sofridos povos explorados.
Este é um traço difícil de ser compreendido pelos adversários da Revolução Cubana e, inclusive, para alguns de seus defensores. Peguemos por exemplo uma bela canção de Silvio Rodriguez, El Nécio. Explica o autor em seu disco que um tanto surpreendido com as insistentes tentativas de seduzi-lo com propostas milionárias de carreiras e contratos no exterior, talvez por estes senhores acreditarem que “todos têm seu preço”, ironicamente responde que se é assim, coloca o seu: “Es una canción de marketing, de precios. Y para que nadie se imagine que soy santo, voy a poner el mío (por ahora): El levantamiento del bloqueo a Cuba y la entrega incondicional del territorio Cubano que E.E.U.U. usa como base naval en Guantánamo”. E diz em sua música:
Para no hacer de mi ícono pedazos,
para salvarme entre únicos e impares,
para cederme un lugar en su Parnaso,
para darme un rinconcito en sus altares.
me vienen a convidar a arrepentirme,
me vienen a convidar a que no pierda,
mi vienen a convidar a indefinirme,
me vienen a convidar a tanta mierda.
Yo no se lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino.
Yo me muero como viví.
É estranho para quem trás no peito uma máquina registradora no lugar do coração entender certas posturas. Quando a URSS ruía e logo após o muro que separava a Alemanha, muitos repórteres internacionais foram a Cuba, prontos para registrar a queda do regime. Alguns devem estar lá, persistentes, até hoje. Mesmo no mais duro dos tempos do chamado período especial, e acreditem eram duros estes tempos no que diz respeito as mais elementares necessidades da existência, Cuba logrou resistir e cabe perguntar por quê? A imprensa internacional tem já pronta sua resposta, a ditadura, o medo, a violência.
Em um documentário sobre o período especial, um dos entrevistados nos diz que quando ouvia Fidel falar das dificuldades, da necessidade de enfrentar as carências tão sérias que estavam enfrentando, mas ao mesmo tempo resistir na alternativa socialista, dizia, “nós acreditávamos nele, pois podemos olhar nos olhos de nossos dirigentes e ver que eles estavam falando a verdade, que não estavam enriquecendo, nem mandando dinheiro para o exterior quando pediam o nosso sacrifício”. Este é um recurso difícil de ser quantificado e que se relaciona com esta rebeldia e dignidade que falávamos. Um pequeno pedaço mais da música de Silvio talvez esclareça melhor.
Yo quiero seguir jugando a lo perdido,
yo quiero ser a la zurda más que diestro,
yo quiero hacer un congreso del unido,
yo quiero rezar a fondo un hijonuestro.
Dirán que pasó de moda la locura,
dirán que la gente es mala y no merece,
más yo seguiré soñando travesuras
(acaso multiplicar panes y peces).
[...]
Dicen que me arrastrarán por sobre rocas cuando la Revolución se venga abajo,
que machacarán mis manos y mi boca,
que me arrancarán los ojos y el badajo.
Será que la necedad parió conmigo,
la necedad de lo que hoy resulta necio:
la necedad de asumir al enemigo,
a necedad de vivir sin tener precio.
Yo no se lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino.
Yo me muero como viví.
Dignidade. Não esperem que explique. Certas coisas são impossíveis de ser explicadas ao cérebro se o coração não entendeu.
UM VELHO CAMINHO EM MEIO A TRÊS ORIGINALIDADES
Finalmente, depois de tecer comentários sobre algumas originalidades da Revolução Cubana, me permito afirmar que esta profunda singularidade alcançada só foi possível porque os revolucionários cubanos souberam se fundamentar em pressupostos e leis que não são em absoluto em nada originais: o marxismo.
Em si mesmo, o verdadeiro marxismo, porque dialético, é simultaneamente tradição e ruptura, herança e inovação, em uma palavra superação dialética. Só pode ir além quem se fundamenta no existente, só pode inventar o futuro evitando as armadilhas do passado, quem conhece a história. Neste aspecto a Revolução Cubana não é original, ela é parte da história do socialismo e reafirma elementos substanciais de todo pensamento revolucionário e, fundamentalmente, do pensamento marxiano.
Não é o caso de realizar um exaustivo inventário desta profunda coerência entre a experiência cubana e os fundamentos do marxismo, mas ressaltemos aqui apenas alguns poucos elementos.
O primeiro deles é o conceito de Revolução Permanente, inicialmente apresentado por Marx e Engels em Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (1850) e depois resgatado com muita propriedade por Trotsky. Por este princípio, ainda que a revolução proletária, por determinações objetivas se encontre na situação de ter que lutar contra o inimigo de seus adversários, no caso da luta da burguesia contra a nobreza feudal deveria conduzir sua estratégia de forma que as condições de desenvolvimento da luta em aliança com a burguesia levariam ao desenvolvimento da luta contra ela no sentido da revolução proletária. Lênin compreendeu perfeitamente isso na passagem da Revolução de fevereiro para a tomada do poder em Outubro. Fidel e seus camaradas não pararam no meio da viagem para descansar e se contentaram em democratizar Cuba, desenvolver o capitalismo, ousaram o salto revolucionário no sentido da transição socialista.
A leitura esquemática e dogmática desta tese leva a uma estranha teoria das etapas, na qual é necessário primeiro desenvolver o capitalismo para depois ser possível uma revolução socialista, tal como se consolidou em certo momento na Terceira Internacional sob influência do período stalinista e virou o principal dogma da deformação social-democrata.
O segundo elemento, que está ligado a este primeiro, é a questão da dualidade de poderes que no caso de Cuba se expressou no momento de constituição do governo Urrítia/Cardona em 1959 ao lado da força organizada da guerrilha e das áreas liberadas. Este é um traço universal nos processos revolucionários, a capacidade de dar forma organizativa e coletiva a uma correlação de forças que torne possível a derrota do inimigo. Assim foram os Soviets na experiência russa, as enormes áreas liberadas com apoio dos camponeses na China e a guerrilha na Sierra Maestra no caso cubano.
O terceiro elemento que Marx e Engels destacam é que a revolução, em algum momento de seu desenvolvimento, encontra a resistência do Estado e de seus meios de dominação, com destaque nos momentos mais agudos de luta, as forças armadas. Ainda que as vias e as formas possam variar muito, e de fato variaram na pequena história do socialismo, não se supõe possível uma revolução que se pretenda verdadeira, seguir seu curso sem que haja rupturas. O mito de desenvolvimento pacífico da revolução, que tanto sangue custou em nossa história (vejam Alemanha e Chile), desconsidera que a implantação de uma transição societária em direção ao socialismo e além dele ao comunismo, não se dará sem rupturas.
Aqueles que desejam preservar suas alianças e as sagradas noções de governabilidade estão condenados a limitar sua ação política nos limites da ordem. Os revolucionários cubanos não padeceram deste mal.
Por último, mas não menos importante, está uma tese central de Marx. A transição socialista só é possível tendo por base o pleno desenvolvimento das forças produtivas materiais que se abrigam na forma societária capitalista. Dizia Marx, em 1859, que nenhuma forma social desaparece antes que se desenvolvam ao máximo todas as forças produtivas que pode conter e jamais surgem novas formas de sociabilidade antes que se desenvolvam, no seio da própria sociedade antiga, as condições materiais para tanto.
Aparentemente Cuba nega esta tese, pois inicia uma revolução que se declara socialista em um país pobre e de escasso desenvolvimento capitalista enquanto grandes países altamente industrializados e plenamente capitalistas contentam-se em acelerar o crescimento capitalista e distribuir bolsas. No entanto, as aparências enganam.
Primeiro devemos ressaltar que nem Marx, nem Engels, consideram uma relação mecânica entre a base material econômica e a luta política, ou seja, a política é entendida como mediação. Isso significa que não existe nenhuma determinação que limite a ação dos seres humanos, pois como afirmava Marx no mesmo texto (2009) a humanidade só se propõe tarefas que podem realizar, pois se analisamos bem, estas tarefas só brotam quando existem ou estão em germinação as condições materiais para enfrentá-las.
Portanto, não é o caso de esperar as condições materiais desenvolvidas para depois agir, o que leva a todo tipo de reformismo e adeqüacionismo que conhecemos. Cuba trilhou seu caminho a partir das condições que ali se apresentavam e que tornavam possível uma revolução e não dá o salto em direção ao socialismo por puro aventurerismo romântico, mas por que a luta de classe ali tornou possível que sua vanguarda assim caminhasse.
No entanto, o desdobramento da construção do socialismo em Cuba prova que a experiência cubana, e neste ponto também todas as experiências socialistas do século XX, comprovam que Marx estava tragicamente certo em sua tese. A autonomia da ação política não pode prescindir das condições materiais, ou seja, ainda que possível ir além com base em condições ainda em germinação, o pouco desenvolvimento das forças produtivas materiais cobrará seu tributo na forma e destino da ousadia empreendida, determinando o rumo da transição, ou não, ao comunismo.
Minha paixão por Cuba e meu sólido compromisso solidário com o povo cubano não me impedem de reconhecer os graves problemas e, em alguns casos, mesmo distorções, em sua experiência revolucionária. Os próprios cubanos as conhecem e, alguns, têm clara consciência de suas conseqüências. Mas, estes problemas não negam as teses centrais do pensamento marxiano, pelo contrário, as confirmam, como podemos destacar em apenas uma simples mas extremamente complexa constatação: a revolução socialista é, necessariamente, internacional.
Os cubanos, com seu compromisso internacionalista para o qual Che é um exemplo, não podem substituir as bases materiais de universalização do capital que torna possível a revolução mundial. Podem, e assim o fizeram e fazem, estar ombro a ombro com toda luta que caminha no sentido da emancipação.
Assim podemos concluir que a Revolução Cubana é profundamente original e não é em seu fundamento original. É continuidade e parte da história da humanidade por sua emancipação, um belo e complexo capítulo desta obra coletiva que estamos a construir. Romântica e realista, rebelde e digna, costurando no corpo de seu sonho notas de ousadia profunda, mas que encontra nos caminhos áridos do real a carne de suas realizações
Bela, trágica e dura... como a vida. Terminemos por, mais uma vez, citar Silvio e seu grito de esperança e resistência: “românticos – al menos hasta el fin – imposmodernizable”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANIEL, J. “La profecia del Che”, in Carlos Tablada Perez. Ernesto Che Guevara, hombre y pensamiento: el pensamiento econômico del Che. Buenos Aires: Antarca, 1987.
GUEVARA. E. “El socialismo y el hombre en Cuba”. Obras, tomo I, s/d.
MARX, K. Contribuição para a crítica da economia política. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm. Acesso em 27 out 2009.
*Graduado em História, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e educador no NEP 13 de Maio. Membro do Comitê Central do Partido
Comunista Brasileiro (PCB).
NOTAS:
1. Che destacava os aspectos tais como a presença do latifúndio, a dinâmica do imperialismo que deforma o desenvolvimento levando à exploração eufemisticamente chamada de subdesenvolvimento, e as condições de vida que poderiam se resumir na expressão em maiúsculas: FOME DO POVO.
Fonte: Revista Múltiplas Leituras, v.2, n.2, p. 109-120, jul. /dez. 2009.
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