É muito comum em várias organizações de esquerda a sustentação da falácia de que existe um capital ruim, só especulativo, que não produz nada (o “capital financeiro”) e um capital bom, produtivo, que gera emprego, que desenvolve o país (o “capital produtivo”). Vou tratar rapidamente do quanto essa ideia é errada e o quanto sua adoção pode gerar consequências políticas horríveis para quem pretende lutar pelo socialismo.
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No início do desenvolvimento capitalista, na Europa do começo do século XIX, era possível fazer uma diferenciação maior entre as diversas frações do capital. Ao fim desse século começa a haver um processo de concentração, fusão, cartelização e monopolização da economia. Lênin em seu clássico “Imperialismo: etapa superior do capitalismo” mostra, com uma série enorme de dados estatísticos, essa concentração monopolística da economia. Ao final do XIX e nas primeiras décadas do XX já tínhamos uma configuração de algumas dezenas de empresas gigantes, com sede em vários países, dominando setores estratégicos da economia e estendendo suas malhas pelo mundo através do imperialismo neocolonial (dominação militar, exportação de capitais, abertura a força de mercados, etc).
Lênin ao analisar os novos fenômenos do capitalismo percebeu que uma nova fração do capital se tornou a dominante, o capital financeiro. Capital financeiro para Lênin e a maioria dos teóricos marxistas é a junção entre capital bancário e capital industrial, com a primazia do primeiro, que de simples intermediário passa a ter o controle da atividade econômica do mundo, detendo capacidade de investimentos e quantidade de capital suficiente para subjugar várias economias aos seus desígnios. Ou seja, capital financeiro é a junção entre capital bancário e industrial na fase monopolística do capitalismo, são “produtivos” e “especulativos” ao mesmo tempo. Antes de ir ao próximo ponto cumpre destacar que podemos considerar o conceito “produtivo” do capital de duas formas: capital que faz o intercâmbio orgânico com a natureza mediado pelo trabalho e produz valores de uso (conteúdo material da riqueza), e; capital não importando a forma com que produz mais-valia. Para o capital, ambos são “produtivos”.
Nos pós-segunda guerra mundial os movimentos de libertação nacional e a ampliação do campo socialista soviético imprimiram limites à expansão do capital. Com a derrota dos primeiros e a queda do segundo, o capital expandiu-se de uma forma violenta e dominou todo globo sem muita resistência. A partir daí, o processo de fusão de capitais, financeirização da economia e aumento da monopolização estava completo (os processos de privatização da era neoliberal ampliaram muito a concentração da economia do mundo em algumas transnacionais). O capital financeiro nunca foi tão forte. Portanto, é um absurdo alguém achar (como faz o PT até hoje e Randolfe Rodrigues, quando candidato a presidente pelo PSOL) que existe uma separação rígida entre “capital financeiro” e “capital produtivo”. Aliado a isso temos alguns problemas:
(a) Se confunde capital bancário-rentista com financeiro. O capital que vive de renda da bolsa, que vive de juros de títulos públicos (em pequenas e médias quantidades) e empréstimos de baixo risco (como o consignado) não é a mesma coisa que o capital financeiro que estende seu poder por vários ramos da economia e tem forte controle sobre todo processo produtivo. O Grupo Odebrecht, por exemplo, controla portos, aeroportos, construção civil, atividades financeiras, química pesada, mineração e produção de energia. É rentista e “produtivo” ao mesmo tempo. Na verdade, é um grupo clássico de tipo capital financeiro descrito por Lênin. Reduzir os juros de uma economia combate o rentismo, mas não o capital financeiro.
(b) Mesmo o capital industrial de matriz mais “nacional”, ligada ao mercado interno e dependente de subsídios estatais para não se engolido pela concorrência internacional não é contra o capital financeiro. Florestan Fernandes na sua teoria do capitalismo dependente já mostrou de forma cabal que em países como o Brasil a burguesia “nacional” tem contradições pontuais com o imperialismo, mas nenhuma contradição fundamental. Pelo contrário, a burguesia “nacional” é parte do instrumento de dominação do imperialismo. Nicos Poulantzas por outros meios chegou a uma conclusão parecida com a de Florestan: a burguesia interna de países dependentes tem certos atritos com o imperialismo, mas não contradição fundamental.
Ou seja, é impossível atacar apenas o capital financeiro e preservar o capital produtivo, “o capital bonzinho”. No Brasil, a grande maioria das grandes indústrias de transformação – como a automobilística – são transnacionais totalmente integradas e dependentes ao mercado mundial financeirizado. O máximo que o capital industrial da burguesia interna apoia é uma política de redução de juros e subsídios ao setor “produtivo”, mas associações como a FIESP não apoiam uma auditoria da dívida pública e o cancelamento de seu pagamento, pois isso seria uma medida que poderia ameaçar todo o sistema de reprodução do capital e seria prejudicial para todas as indústrias dado seu grau maior ou menor de dependência do imperialismo.
Para terminar e em resumo: defender que existe uma separação rígida entre capitais, que existe um capital “bom” (produtivo) e “ruim” (financeiro, que na verdade é o bancário-rentista) foi um dos principais passos do PT para defender uma aliança com a burguesia interna contra o “capital financeiro” e o resultado todos sabemos. Lamento ver quadros importantes do PSOL defendendo a mesma ideia falaciosa. Cumpre por fim destacar que as experiências atuais da Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia mostram que não se pode atacar setores rentistas e algumas transnacionais sem comprar briga com o conjunto da burguesia. Já perdemos muito com as ilusões da “revolução democrático-burguesa”. Não vamos reeditar essa besteira de forma mais vulgar.
Por Jones Makaveli, graduando em História pela UFPE, pesquisador do NEEPD e militante da UJC.
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