11 de março de 2011
Do IHU On-Line
“A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) está usando uma interpretação totalmente equivocada dos dados do censo agropecuário para tentar passar a ideia de que de 1960 para cá houve uma recuperação florestal nos imóveis particulares”, mencionou Raul do Valle à IHU On-Line, ao comentar o relatório divulgado pela CNA, o qual mostra que houve crescimento de matas e florestas em terras particulares.
Segundo ele, cerca de 80% do que restou da mata atlântica faz parte de imóveis particulares e tem déficit de vegetação nativa. “Não há dados precisos para o país como um todo, mas para algumas regiões, sim. Por exemplo, na bacia do rio Xingu, no Mato Grosso, há mais de 300 mil hectares de matas ciliares degradadas ou desmatadas”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, Valle também se manifestou contrário ao projeto de elaboração do novo Código Florestal, proposto pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), o qual será votado na Câmara dos Deputados ainda no mês de março.
“Defendemos que uma reforma na lei atual não anistie desmatamentos ilegais, mas permita que o proprietário que estiver numa área apta à agricultura e já tenha investido recursos para melhorá-la, possa compensar sua reserva legal recuperando áreas menos apropriadas”.
Raul Silva Telles do Valle é advogado e mestre em Direito Econômico, formado pela Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua reação diante do relatório Revisão do Código Florestal, elaborado pela CNA referente ao crescimento de matas e florestas em terras particulares?
Raul Silva Telles do Valle – A CNA está usando uma interpretação totalmente equivocada dos dados do censo agropecuário para tentar passar a ideia de que, de 1960 para cá, houve uma recuperação florestal nos imóveis particulares. Estão falando em um aumento de 72,5%. Essa é uma afirmação que não só não é corroborada pelos dados, como fere o bom senso. Será que alguém acredita que nos últimos 50 anos houve mais recuperação florestal do que desmatamento, e nessa magnitude? Se fosse assim a própria CNA não estaria pleiteando a revogação do Código Florestal, pois a grande parte dos proprietários estaria regularizada e não teria nada a temer com a aplicação da lei atual.
IHU On-Line – Quais os principais equívocos do relatório?
Raul Silva Telles do Valle – Nós fizemos uma análise desses dados (http://migre.me/3YUeF) e identificamos o equívoco. Em 1960, segundo os dados do IBGE, os imóveis particulares tinham, em média, 23,2% de sua área coberta por vegetação nativa. Em 2006, data dos dados mais recentes, a média subiu para 29,9%. Houve, portanto, um crescimento modesto, de 6,66%. E esse crescimento se deve, sobretudo, à incorporação de áreas públicas com vegetação nativa, especialmente na Amazônia e no Cerrado. Como muitas dessas áreas ainda não foram totalmente desmatadas, e na Amazônia a reserva legal é muito maior que no restante do país (80% x 20%), é natural que haja hoje, proporcionalmente, um pouco mais de floresta nos imóveis do que em 1960. Mas não porque houve recuperação. Infelizmente.
IHU On-Line – A maioria das áreas de preservação no Brasil pertence a particulares ou à união. Qual a atual situação de preservação das matas em terras particulares?
Raul Silva Telles do Valle – Grande parte das terras no país pertence a particulares e, portanto, naturalmente grande parte das matas está em mãos particulares. Estima-se que cerca de 80% do que restou de mata atlântica esteja em imóveis particulares. Mas, em função de um histórico de desrespeito à lei, que nunca teve instrumentos eficientes para ser aplicada, hoje boa parte dos imóveis particulares tem algum déficit de vegetação nativa, ou seja, está irregular. Não há dados precisos para o país como um todo, mas para algumas regiões, sim. Por exemplo, na bacia do rio Xingu no Mato Grosso há mais de 300 mil hectares de matas ciliares degradadas ou desmatadas. Isso sem contar as áreas de reserva legal.
O fato é que há sim um grande passivo, e temos que encontrar formas inteligentes de recuperá-lo, devolvendo vegetação nativa de onde ela nunca deveria ter sido tirada. A proposta defendida pela CNA – relatório Aldo Rebelo – simplesmente elimina esse passivo ao dizer que não é mais necessário recuperá-lo. É um prêmio a quem desrespeitou a lei e uma ameaça à integridade de nossos ecossistemas.
IHU On-Line – O Código Florestal foi reformulado nos anos 1960. Hoje, com uma conjuntura ambiental e econômica diferente, que aspectos a reforma no Código Florestal deveria considerar?
Raul Silva Telles do Valle – Deve considerar, sobretudo, mecanismos econômicos de incentivo à conservação e recuperação. Por exemplo, defendemos que uma reforma na lei atual não anistie desmatamentos ilegais, mas permita que o proprietário que estiver numa área apta à agricultura e já tenha investido recursos para melhorá-la possa compensar sua reserva legal recuperando áreas menos apropriadas, cujo uso econômico é baixo e que, via de regra, estão causando permanentemente prejuízos à sociedade, assoreando rios, desmoronando encostas, interrompendo o fluxo de fauna e flora, contribuindo com enchentes etc. Essa é uma reforma inteligente, que olha para frente, na lógica de criar um mercado para florestas nativas no país, que possa manter áreas hoje preservadas e recuperar áreas hoje degradadas.
IHU On-Line – Um novo código deveria dar atenção especial à floresta amazônica?
Raul Silva Telles do Valle – O ideal seria que cada bioma tivesse uma legislação específica, de acordo com suas peculiaridades, como tem a Mata Atlântica. A Amazônia é um caso óbvio. O conceito de mata ciliar não se aplica ali, pois os igapós são áreas de extrema sensibilidade ambiental, fundamentais para o ciclo ecológico dos rios, e vão muito além dos 30 ou 100 metros de APP. Deveria haver uma regra específica. Além disso, deveriam existir regras de incentivo específicas à exploração florestal sustentável. Hoje eles existem, mas são poucos.
IHU On-Line – Quais as vantagens e desvantagens do atual código florestal?
Raul Silva Telles do Valle – A vantagem é que ele manda proteger áreas importantes para a produção de serviços ambientais, muito embora estudos recentes sobre faixas ripárias, por exemplo, indiquem que ele é insuficiente. Mas ele traz a ideia de que o dever de proteger é de todos, e não apenas do Estado. A desvantagem é que ele não tem medidas de apoio e incentivo, mas apenas de punição. Com os muitos anos de leniência da sociedade com sua aplicação, não dá para pensar que apenas com multas vamos resolver o problema do passivo. Elas são fundamentais, mas insuficientes. Temos que abrir um novo caminho de incentivos econômicos, de forma que o proprietário que está de acordo com a lei perceba vantagens concretas na hora de pegar um crédito agrícola, comercializar sua produção, pagar imposto rural etc.
IHU On-Line – Quais as implicações da nova proposta de Código Florestal?
Raul Silva Telles do Valle – A proposta que está sendo discutida, elaborada pelo deputado Aldo Rebelo e apoiada pela bancada ruralista, tem uma implicação muito simples: vai premiar a ilegalidade e manter para sempre degradadas áreas ambientalmente importantes. Por exemplo, uma beira de rio que estiver ocupada desde antes de 2008, e que todos os anos joga toneladas de solo para dentro da água, poderá continuar do jeito que está. Pela lei atual ela deveria ser recuperada.
Além disso, diminui a área de reserva legal em todo o país, isentando os imóveis de até quatro módulos fiscais. Isso, além de não ter sentido, abre uma brecha impressionante para fraude, pois muitos imóveis maiores são, para os olhos do cartório, um conjunto de matrículas de imóveis menores e todos eles podem passar a ser isentos de reserva legal. O efeito, portanto, é imponderável, mas sabe-se que mais de 95% dos imóveis deixariam de ter reserva legal.
IHU On-Line – Uma das propostas do novo código é anistia completa para todas as multas aplicadas por desmatamento de Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). Como vê a possibilidade de anistiar quem desmatou as florestas?
Raul Silva Telles do Valle – O problema não é anistiar multas, mas desobrigar a recuperação dessas áreas. Se o sujeito recuperar a área, não precisa ser multado. Mas o projeto, na verdade desobriga a recuperação, o que é intolerável.
IHU On-Line – A CNA defende que desde 1989, ano de criação da reserva legal do cerrado, não houve mais desmatamento. O senhor sabe qual é a atual situação do bioma?
Raul Silva Telles do Valle – A reserva legal no cerrado existe desde antes de 1989. É uma afirmação enganosa essa da CNA. Há vários casos de reserva legal preservada, com autorização do poder público, anteriores a 1989. Eles interpretam a lei do jeito que mais lhes convém, mesmo que não encontre respaldo na realidade.
Extraído da página do MST
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