por Sandra Helena Cruz
A lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles amazônicas. Assim, as cidades de Belém e Manaus, nos dias atuais, têm na infraestrutura urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local e global, mesmo que para isso as relações sociais e culturais sejam alteradas de forma drástica e arbitrária.
Reprodução | Vista aérea de construção da ponte de 3,6 km sobre o Rio Negro entre Manaus e Iranduba |
A Amazônia emergiu no cenário da história mundial como uma região de grandes amplitudes culturais, políticas e econômicas. Tratava-se de um lugar com uma vasta floresta tropical, rica e “intocada”. Seu processo de ocupação por homens e mulheres que chegavam atraídos pelo potencial econômico que a região possibilitava ignorou por completo as populações nativas que viviam em harmonia com a natureza. A paisagem natural foi sendo transformada por ações que rapidamente devastaram a flora e a fauna específicas, os povos nativos foram sendo dizimados e substituídos por significativos contingentes de pessoas vindas de todas as regiões do país e do exterior.
Nesse período, o tempo das cidades amazônicas acompanhava o movimento estabelecido pela dinâmica do trabalho na floresta – manual e com recursos artesanais –, que ia desde a extração dos recursos naturais para a economia de subsistência até a comercialização interna de seu excedente. Tanto a literatura nacional como a regional revelam que no século XIX e em meados do século XX a região amazônica contava apenas com pequenos núcleos ou aglomerados urbanos, configuração que só seria alterada com os primeiros investimentos urbanísticos feitos nas cidades de Belém e Manaus, preparando-as para a nova dinâmica capitalista de base industrial no Brasil.
O modelo de desenvolvimento urbano adotado, entretanto, explica-se pelo lugar que o urbano tomou no processo de acumulação do capital, em que as cidades se tornaram grandes expressões territoriais para o crescimento econômico na Amazônia, resultante das políticas governamentais de crédito e de incentivos fiscais enquanto elementos facilitadores para a atração de novos projetos econômicos. Nesse sentido, a adoção do modelo de grandes projetos econômicos e de infraestrutura1 na Amazônia data dos anos 1970 e 1980, quando o governo federal, ao cumprir sua agenda de industrialização e de pagamento da dívida externa, verificou que seria possível gerar novas divisas para o país, por meio da exploração dos recursos naturais existentes na região. Chegou-se a falar de “enclaves” econômicos e de uma “urbanização da fronteira”, na tentativa de compreender as transformações que ocorreram nessa região, de acordo com a lógica desses grandes projetos, introduzidos segundo a concepção de uma modernização conservadora, que ao nortear a ação governamental não considerou as particularidades e especificidades regionais, como as que fazem parte da região amazônica, com forte presença de populações tradicionais com hábitos socioculturais específicos.
Contraditoriamente, contudo, a lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles amazônicas, que foram reestruturadas com base em grandes projetos urbanos, fundados em investimentos de infraestrutura, passando a agregar maior valor econômico ao território. Assim, Belém e Manaus, nos dias atuais, por estarem submetidas a processos de transformação regidos pelo modelo de “cidades estratégicas”, têm na infraestrutura urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local e global, mesmo que para isso as relações sociais e culturais sejam alteradas de forma drástica e arbitrária. É o caso dos projetos Portal da Amazônia, em Belém e o Programa de Saneamento Ambiental dos Igarapés Manaus (Prosamim), em Manaus.
Nessas cidades, as áreas que receberão infraestrutura urbana graças aos grandes projetos urbanos tendem a se tornar lugares valorizados economicamente, atendendo ao mercado de moradias e desorganizando a vida social e cultural das áreas de intervenção. Em Belém, a melhoria habitacional, enquanto objetivo do Portal da Amazônia, restringe-se às ações de remanejamento de grande parte da população atingida. São trabalhadores ribeirinhos que terão a vida afetada e moradores que passarão a ocupar lugares mais distantes; as áreas incluem ainda os portos e trapiches públicos, de uso popular e ameaçados de extinção, pois são serviços e circuitos que não fazem parte da intervenção urbanística que ora acontece nessa cidade.
Em Manaus, o Prosamim, ao modificar as áreas centrais da cidade, embelezando-as, reproduz um novo processo de periferização, deslocando as famílias atingidas para conjuntos habitacionais distantes, construídos com a finalidade de reassentá-las. Aquelas que “optam” por permanecer nas unidades habitacionais construídas nas áreas denominadas “solo criado” a partir do aterramento dos igarapés devem ser capacitadas para habitar o novo lugar, adaptando-se à nova moradia. Trata-se de construir uma “nova etiqueta urbana” que ajude a manter o padrão concebido para essas moradias, dando ainda mais conteúdo à segregação que agora não só fragmenta e divide a cidade, mas também cria estigmas: dos pobres que vieram das palafitas e não sabem viver no centro da cidade limpa, saneada e embelezada.
A fisionomia dessas cidades é, portanto, reconfigurada para torná-las atrativas para novas relações socioeconômicas e culturais. A lógica prevalente é a do modelo de planejamento estratégico, assentado em conceitos e técnicas do planejamento empresarial. Tais medidas, contudo, ao produzirem novos centros urbanos, desarticulam relações construídas historicamente, como aquelas ligadas diretamente à questão da moradia. São relações de vizinhança, atividades econômicas, manifestações culturais, práticas associativas etc., que são desagregadas, dando lugar ao progresso e à modernidade, em que tudo que é antigo, velho ou tradicional passa a ser decadente, precisando ser extirpado, afastado, eliminado, para dar lugar ao novo, limpo, belo e moderno. A política urbana, então, ao garantir melhorias e infraestrutura urbana, paradoxalmente assegura as condições necessárias à produção da cidade espoliativa, excludente e segregativa. A cidade do capital.
*Assistente social, doutora em Ciência Socioambiental e docente adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará.
Ilustração: Leonardo Papini/ Sambaphoto
1 Sobre essa questão, ver Jean Hébette, “Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia”, Naea/UFPA, Belém, 1989, p.8-10. (Cadernos Naea, n.10). Ele aponta: “[...] a incorporação da Amazônia ao modelo sociopolítico adotado pelas frações da burguesia dos polos dominantes do país se fez sob o duplo signo da industrialização atrelada à dinâmica das economias capitalistas centrais e da doutrina da Segurança Nacional. [...] A abertura oficial da Amazônia ao capital, nacional e estrangeiro, teve efeitos imediatos. Interessava a todos esse espaço relativamente protegido e preservado do planeta. Cada um vinha agora, sem constrangimento, procurar ali o que lhe aprouvesse: terra, madeira, minério, recursos hidrelétricos. O Estado, inclusive, estimulou esses interesses através de incentivos fiscais e da implantação de obras de infraestrutura”.
Fonte: Le Monde Diplomatique
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