"Se você treme de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros." (Che Guevara)

sábado, 25 de janeiro de 2014

De qual cidade se apropriam os pobres?

por Sandra Helena Cruz

A lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles amazônicas. Assim, as cidades de Belém e Manaus, nos dias atuais, têm na infraestrutura urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local e global, mesmo que para isso as relações sociais e culturais sejam alteradas de forma drástica e arbitrária.

Reprodução | Vista aérea de construção da ponte de 3,6 km sobre o Rio Negro entre Manaus e Iranduba
A Amazônia emergiu no cenário da história mundial como uma região de grandes amplitudes culturais, políticas e econômicas. Tratava-se de um lugar com uma vasta floresta tropical, rica e “intocada”. Seu processo de ocupação por homens e mulheres que chegavam atraídos pelo potencial econômico que a região possibilitava ignorou por completo as populações nativas que viviam em harmonia com a natureza. A paisagem natural foi sendo transformada por ações que rapidamente devastaram a flora e a fauna específicas, os povos nativos foram sendo dizimados e substituídos por significativos contingentes de pessoas vindas de todas as regiões do país e do exterior.

Nesse período, o tempo das cidades amazônicas acompanhava o movimento estabelecido pela dinâmica do trabalho na floresta – manual e com recursos artesanais –, que ia desde a extração dos recursos naturais para a economia de subsistência até a comercialização interna de seu excedente. Tanto a literatura nacional como a regional revelam que no século XIX e em meados do século XX a região amazônica contava apenas com pequenos núcleos ou aglomerados urbanos, configuração que só seria alterada com os primeiros investimentos urbanísticos feitos nas cidades de Belém e Manaus, preparando-as para a nova dinâmica capitalista de base industrial no Brasil.

O modelo de desenvolvimento urbano adotado, entretanto, explica-se pelo lugar que o urbano tomou no processo de acumulação do capital, em que as cidades se tornaram grandes expressões territoriais para o crescimento econômico na Amazônia, resultante das políticas governamentais de crédito e de incentivos fiscais enquanto elementos facilitadores para a atração de novos projetos econômicos. Nesse sentido, a adoção do modelo de grandes projetos econômicos e de infraestrutura1 na Amazônia data dos anos 1970 e 1980, quando o governo federal, ao cumprir sua agenda de industrialização e de pagamento da dívida externa, verificou que seria possível gerar novas divisas para o país, por meio da exploração dos recursos naturais existentes na região. Chegou-se a falar de “enclaves” econômicos e de uma “urbanização da fronteira”, na tentativa de compreender as transformações que ocorreram nessa região, de acordo com a lógica desses grandes projetos, introduzidos segundo a concepção de uma modernização conservadora, que ao nortear a ação governamental não considerou as particularidades e especificidades regionais, como as que fazem parte da região amazônica, com forte presença de populações tradicionais com hábitos socioculturais específicos.

Contraditoriamente, contudo, a lógica dos grandes projetos irradiou-se para o interior das metrópoles amazônicas, que foram reestruturadas com base em grandes projetos urbanos, fundados em investimentos de infraestrutura, passando a agregar maior valor econômico ao território. Assim, Belém e Manaus, nos dias atuais, por estarem submetidas a processos de transformação regidos pelo modelo de “cidades estratégicas”, têm na infraestrutura urbana um meio de ampliar divisas em âmbito local e global, mesmo que para isso as relações sociais e culturais sejam alteradas de forma drástica e arbitrária. É o caso dos projetos Portal da Amazônia, em Belém e o Programa de Saneamento Ambiental dos Igarapés Manaus (Prosamim), em Manaus.

Nessas cidades, as áreas que receberão infraestrutura urbana graças aos grandes projetos urbanos tendem a se tornar lugares valorizados economicamente, atendendo ao mercado de moradias e desorganizando a vida social e cultural das áreas de intervenção. Em Belém, a melhoria habitacional, enquanto objetivo do Portal da Amazônia, restringe-se às ações de remanejamento de grande parte da população atingida. São trabalhadores ribeirinhos que terão a vida afetada e moradores que passarão a ocupar lugares mais distantes; as áreas incluem ainda os portos e trapiches públicos, de uso popular e ameaçados de extinção, pois são serviços e circuitos que não fazem parte da intervenção urbanística que ora acontece nessa cidade.

Em Manaus, o Prosamim, ao modificar as áreas centrais da cidade, embelezando-as, reproduz um novo processo de periferização, deslocando as famílias atingidas para conjuntos habitacionais distantes, construídos com a finalidade de reassentá-las. Aquelas que “optam” por permanecer nas unidades habitacionais construídas nas áreas denominadas “solo criado” a partir do aterramento dos igarapés devem ser capacitadas para habitar o novo lugar, adaptando-se à nova moradia. Trata-se de construir uma “nova etiqueta urbana” que ajude a manter o padrão concebido para essas moradias, dando ainda mais conteúdo à segregação que agora não só fragmenta e divide a cidade, mas também cria estigmas: dos pobres que vieram das palafitas e não sabem viver no centro da cidade limpa, saneada e embelezada.

A fisionomia dessas cidades é, portanto, reconfigurada para torná-las atrativas para novas relações socioeconômicas e culturais. A lógica prevalente é a do modelo de planejamento estratégico, assentado em conceitos e técnicas do planejamento empresarial. Tais medidas, contudo, ao produzirem novos centros urbanos, desarticulam relações construídas historicamente, como aquelas ligadas diretamente à questão da moradia. São relações de vizinhança, atividades econômicas, manifestações culturais, práticas associativas etc., que são desagregadas, dando lugar ao progresso e à modernidade, em que tudo que é antigo, velho ou tradicional passa a ser decadente, precisando ser extirpado, afastado, eliminado, para dar lugar ao novo, limpo, belo e moderno. A política urbana, então, ao garantir melhorias e infraestrutura urbana, paradoxalmente assegura as condições necessárias à produção da cidade espoliativa, excludente e segregativa. A cidade do capital. 


*Assistente social, doutora em Ciência Socioambiental e docente adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará.

Ilustração: Leonardo Papini/ Sambaphoto

1 Sobre essa questão, ver Jean Hébette, “Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia”, Naea/UFPA, Belém, 1989, p.8-10. (Cadernos Naea, n.10). Ele aponta: “[...] a incorporação da Amazônia ao modelo sociopolítico adotado pelas frações da burguesia dos polos dominantes do país se fez sob o duplo signo da industrialização atrelada à dinâmica das economias capitalistas centrais e da doutrina da Segurança Nacional. [...] A abertura oficial da Amazônia ao capital, nacional e estrangeiro, teve efeitos imediatos. Interessava a todos esse espaço relativamente protegido e preservado do planeta. Cada um vinha agora, sem constrangimento, procurar ali o que lhe aprouvesse: terra, madeira, minério, recursos hidrelétricos. O Estado, inclusive, estimulou esses interesses através de incentivos fiscais e da implantação de obras de infraestrutura”.

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