"Se você treme de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros." (Che Guevara)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Somos meros reprodutores de uma cultura hegemônica ou somos originais e nos aventuramos ao novo e temos a ousadia de transformar a história?"

1)    Dados do texto:

·         Título – Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa
·         Autor – Eduardo Mourão Vasconcelos
·         Editora – Vozes
·         Local – Petrópolis / Rio de Janeiro
·         Ano – 2002
Fichamento de Yuri vasconcelos*, originalmente para o Programa e Pós Graduação  em Extensão Rural e Desenvolvimento Local - UFRPE


2)     Destaques e Comentários:

·         Um ponto interessante é analisar de que forma vemos o mundo em que vivemos. Somos meros reprodutores de uma cultura hegemônica ou somos originais e nos aventuramos ao novo e temos a ousadia de transformar a história? O autor faz um comparativo com a máquina fotográfica. Neste caso, podemos ser convencionais e tirarmos a fotos da maneira tradicional, ou seja, em pé e dirigindo a câmera para um objetivo à nossa frente. Entretanto, podemos ensaiar várias variações, como olhar de baixo para cima ou vice-versa; direções verticais; variação com as diferentes lentes; entre outras possibilidades de ver e representar as formas que vemos. Os rebatimentos deste processo também podem se dá no campo da ciência, da pesquisa e da prática profissional, no campo das idéias e da percepção social e política do mundo. Ou seja, nos arriscarmos ao novo, na perspectiva de transformarmos a realidade em que vivemos, constitui um desafio para a nova geração.
·         As propostas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade não devem operar através de uma opção pela homogeneização e imperialismo epistemológicos. Esta afirmação parte do pressuposto de que os fenômenos físicos, biológicos, sociais e subjetivos possuem cada um a sua própria natureza e não poderiam ser explicados por um único tipo de saber globalizante. No entanto, várias foram as tentativas de construir um saber totalizante, como por exemplo, a teologia cristã medieval com sua explicação global dos fenômenos naturais e humanos e a perseguição pela Inquisição aos cientistas e intelectuais que divergiam de suas idéias a partir da Renascença. Essa e outras tentativas foram desastrosas, uma vez que reduz a complexidade dos fenômenos e produzem movimentos expansivos de ocupação de forma a imperializar vários outros campos de fenômenos naturais, biológicos, humanos e subjetivos sob este único campo de conhecimento ou da ciência, ou de um único paradigma.
·         O autor pontua outro exemplo de tentativa de saber totalizante, que é o período stalinista na antiga União Soviética, colocando que o centralismo democrático constituiu uma das razões do autoritarismo totalitário e da burocracia dos regimes de socialismo real existentes. Concordo com a tentativa de saber totalizante por parte de Stálin, mas discordo veementemente do autor no que diz respeito ao centralismo democrático. O centralismo democrático, na concepção leninista, representa uma centralização com base na democracia e democracia sob direção centralizada. Ou seja, os partidos comunistas representam não os interesses de indivíduos ou grupos de indivíduos, mas sim os interesses de toda uma classe. Porém, para que estes interesses possam ser expressos na forma de uma vontade única, surge a necessidade de ela ser conduzida através de uma direção centralizada. O centralismo democrático valoriza as posições das mais variadas possíveis, entretanto, enquanto partido revolucionário, tem-se uma única posição deliberada coletivamente e em instância onde todos participam. Representa a importância da unidade de ação perante a sociedade em geral.  A distorção do seu significado durante o período stalinista não pode fazer com que o seu conceito seja modificado, como ficou evidenciado nas colocações do autor. O centralismo de Stálin representou um processo de homogeneização epistemológica, entretanto, isso não é o que defende o conceito de centralismo democrático. Na prática, centralismo democrático significa: igualdade de direitos e deveres para todos os militantes; direção coletiva; todos os órgãos do partido, bem como os cargos dirigentes são eleitos de baixo para cima; existência de uma severa disciplina e subordinação acerca das decisões da maioria sobre a minoria. Por fim, cabe ressaltar que o centralismo democrático é uma forma de organização partidária e não para uma sociedade, como no caso da Igreja ou no próprio período stalinista.
·         O âmbito do debate acerca da interdisciplinaridade deve ser necessariamente ampliado para incluir também os saberes que não se encontram no âmbito institucional das disciplinas científicas, como o saber popular. Ou seja, é preciso trabalhar a interdisciplinaridade tanto com as disciplinas científicas como com os saberes não institucionais. É o que se denomina como práticas interepistemológicas e/ou “práticas interparadigmáticas. Dessa forma, constrói-se uma prática interdisciplinar crítica e mais comprometida com uma perspectiva popular-democrática e pluralista.
·         Conceito de paradigma proposto por Thomas Kuhn (1922-1996). Pelo conceito, ele entende um conjunto de leis, conceitos, modelos, analogias, valores, regras e critérios para avaliação de teorias e formulação de problemas. Kuhn considera como revoluções científicas os períodos quando não ocorre acúmulo de novos conhecimentos e que levam a que o antigo paradigma seja substituído completamente ou em parte, por outro novo e incompatível. Edgar Morin acrescenta à definição a noção de que os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles, através inclusive de dimensões profundas, no nível do mito e do sagrado, às vezes até mesmo sob a fachada de ciência ou razão, estabelecendo tabus, proibições e bloqueios, que acarreta em um mecanicismo do ser humano e em uma reprodução do modelo de sociedade em que vivemos.   
·         Morin contrapõe o paradigma da simplicidade ao que chamou “paradigma da complexidade”, sendo crucial para o campo das teorias humanas e sociais, e chave para a construção de estratégias epistemológicas adequadas para práticas interdisciplinares explicitamente críticas, pluralistas, sem o apelo a um relativismo radical. Morin define a complexidade como um tecido interdependente e interativo entre as partes e o todo e entre as partes entre si.
·         Segundo Morin, algumas características são inerentes dos fenômenos complexos: os fenômenos complexos são marcados pelos princípios da interação com o observador ou da implicação, pelo qual a análise ou intervenção em um fenômeno depende sempre da perspectiva do observador; o conhecimento acerca dos fenômenos complexos implica incertezas, descontinuidades e desconhecimento parcial, principalmente acerca dos níveis diferenciados de sua organização ou do sistema de interação entre eles ou entre níveis epistemológicos diversos; os fenômenos complexos são complicados, mas a complexidade não se reduz á noção de complicação.
·         O método desenvolvido por Morin é complexo e denso, representando uma tentativa abrangente e “enciclopédica” de articular os vários tipos de conhecimentos. Entretanto, não se trata de cair no mesmo erro de tentar construir um saber totalizante. Seu método não parte apenas da refutação dos saberes constituídos, parte da necessidade de “reorganizar o nosso sistema mental para reaprender a aprender”.
·         Dentro dos aspectos trabalhados por Morin, há uma ênfase nos aspectos conceituais, lógicos e míticos, relegando outros aspectos, como as determinações econômicas, políticas, sociais e culturais, a um plano extremamente secundário. Considero isso um erro grave, pois a luta política e ideológica deve caminhar junto às teorias acadêmicas e científicas.
·         Diferença entre campo disciplinar e campo epistemológico/paradigmático – o campo disciplinar é uma delimitação feita por disciplinas científicas e profissões respectivas, enquanto que o campo epistemológico/paradigmático representa a delimitação de fenômenos com determinadas características comuns que exigem saberes e estratégias epistemológicas ou paradigmáticas específicas capazes de lidar com elas. Exemplo: a Física constitui uma disciplina científica, mas comporta diferentes campos epistemológico/paradigmáticos.
·          A transdisciplinaridade é extremamente importante, pois possui a estratégia de abordagem de diversos componentes transversais que atravessam qualquer realidade humana e social. Trabalha tanto com as disciplinas científicas como com os saberes não institucionais.
·         Fritz Wallner constrói uma importante técnica que consiste em: tira-se uma corrente de argumentos de seu contexto, pode-se ter pura irracionalidade, mas também pode fazer emergir novas estruturas que dão nova luz à narrativa, principalmente em relação às suas concepções extracientíficas. Essa técnica promove uma melhor percepção crítica dos limites e absurdos de diversos elementos dos métodos, teorias e conceitos utilizados; além de colocar novas questões para o cientista, que jamais lhe viriam à cabeça, induzindo a busca de novos horizontes para a superação de problemas e desafios internos. Esta técnica de Wallner permitiu o diálogo da comunidade científica mais ampla com a sociedade em geral, evitando a separação entre práxis científica e práxis social.
·         Para Boaventura de Souza Santos, a industrialização moderna não trouxe nem progresso nem desenvolvimento. Parte de uma lógica meramente econômica, sendo incapaz de perceber a degradação ambiental e as desigualdades sociais que acarreta. Para o autor, são necessários alguns novos elementos nos estudos científicos: passagem do monoculturalismo para o multiculturalismo, ou seja, de uma postura que assuma o desafio de se comunicar com culturas reduzidas ao silêncio; acentuação do caráter dialógico, ou seja, de reconhecimento, conhecimento e diálogo com o auditório que se pretende influenciar, não o entendendo como algo fixo, mas em permanente mudança; valorização das características de solidariedade e participação ainda presentes nas comunidades; superação da distinção entre natureza e cultura/sociedade, na medida em que todas as ciências naturais vão se reconhecendo como ciências sociais; e a indicação de um novo tipo de responsabilidade, mais coletivo e centrado na solidariedade com a natureza e o futuro.
·         A contribuição de Santos é fundamental no trabalho de ir mapeando os indícios do novo paradigma. Entretanto, algumas questões ainda precisam ser mais exploradas, como por exemplo, analisar se ainda podemos falar da ciência e de seus paradigmas nos diversos períodos históricos apenas no singular, sem reconhecer campos epistemológicos diferentes, com autonomia relativa e regras próprias.
·          Princípios norteadores para práticas interdisciplinares e interparadigmáticas em instituições de caráter universalistas, como as universidades e institutos públicos de pesquisa
+ Princípio da contradição, de não identidade ou redutibilidade de um campo epistemológico ao outro. Na ótica do pensamento da complexidade, deve ter como princípio o pleno reconhecimento das contradições, das diferenças internas dos fenômenos e processos naturais, humanos e sociais, mesmo que isso represente dificuldades da geração de consensos. Darcy Ribeiro afirma que quanto maiores os conflitos em instituições, como as universidades, maiores serão as chances de essas mesmas instituições transformarem-se, no sentido de melhor atender as demandas da sociedade;
+ Princípio da autonomia institucional acadêmico-científica e do auto-organização do trabalho teórico e científico, mas com explicitação mediada de seus valores éticos e de sua práxis social. Assim, os pesquisadores e demais pessoas participantes devem determinar quem trabalha com quem, o objeto de sua pesquisa e os seus métodos. Portanto, nega-se a suposta neutralidade científica ou acadêmica, abrindo o debate com a sociedade mais ampla e com organizações e grupos populares dos princípios e problemas éticos da pesquisa e prática científica e profissional;
+ Princípio da gestão da prática interdisciplinar e interparadigmática como processo de aprendizagem e práxis social;
+ Princípio da formação de redes horizontais de colaboração, troca de experiências e trabalhos integrados, em substituição aos processos de unificação ou subordinação institucional entre grupos de pesquisa.
·         Princípios norteadores para práticas interdisciplinares e interparadigmáticas polarizadas por projetos políticos emancipatórios e popular-democráticos com vocação hegemônica
+ Visar à transformação econômica, social, política e ambiental do nível local ao nível global e planetário, e que concomitantemente assumem a bandeira do pluralismo, da democracia e do respeito à complexidade e às diferenças étnicas, culturais, existenciais e de gênero;
+ Categorias como ideologia, hegemonia, intelectuais orgânicos, bloco histórico, entre outras, desde que recicladas e libertadas dessas limitações associadas a seu tempo, constituem ferramentas fundamentais para estabelecer os fundamentos da luta popular-democrática em sociedades complexas, pluridimensionais e com movimentos sociais tão diversificados;
+ Entender o processo da globalização não como um fenômeno linear, automático e irreversível, mas um conjunto complexo e multidimensional envolvendo também fenômenos e identidades sociais, culturais, tecnológicos, étnicos, religiosos, locais, ambientais, jurídicos, que se expressam por constantes processos contraditórios de hetero e homogeneização, des e reterritorialização, revitalização e fragmentação de identidades coletivas.
·         Princípios para pesquisas sociais críticas e engajadas, e de caráter interparadigmático e complexo:
+ Assumir como prioridade fundamental na pesquisa a tomada de encargo e a responsabilidade social acerca uma temática, grupo populacional ou área de intervenção pública, com todas as suas complexidades, desafios, paradoxos e incertezas;
+ Buscar a identificação de parceiros mais comprometidos ética, política e teoricamente com o tema, visando à estabilização gradativa, mas aberta, de uma frente popular-democrática e pluralista de abordagens e grupos de pesquisa e de trabalho em torno de um projeto, tema ou prática social;
+ Assumir a perspectiva de que a capacidade de produção de conhecimento inovador e criativo em ciências humanas e sociais se sustenta diretamente no processo de singularização, na mobilização dos impulsos estéticos, no processo de individuação do(s) pesquisador(es) e de construção de narrativas e perspectivas próprias de visão de mundo;
+ Assumir a perspectiva da interdisciplinaridade e da complexidade como valores ético-políticos inerentes às lutas emancipatórias e popular-democráticas, a serem incorporadas de forma explícita em nossa subjetividade, formação e organizações científicas, profissionais e dispositivos dos movimentos sociais.
·         Um exemplo muito interessante da especialização e da fragmentação dos saberes está no campo da saúde pública, uma vez que as pessoas sejam separadas e jogadas de um lado para o outro, entre competências diferentes. Acarreta em uma desresponsabilização do serviço público, onde as questões não são de responsabilidade de ninguém e as pessoas acabam abandonadas a si mesmas.
·         Ecletismo X Pluralismo – por ecletismo entendemos a conciliação e o uso simultâneo, linear e indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar as diferenças e incompatibilidades na origem histórica, na base conceitual e epistemológica, e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um desses pontos de vista. O pluralismo, por sua vez, representa o impedimento de que múltiplas associações de interesses caíam na fragmentação corporativa ou particularista, por um lado, e, por outro, a conservação dessa multiplicidade, diversidade e pluralismos de sujeitos.
·         Os termos interdisciplinaridade e transdisciplinaridade podem reduzir a riqueza do fenômeno e das várias possibilidades de estratégias concretas das novas formas de conhecimento e prática. As diferenças não emergem apenas através das fronteiras entre disciplinas, mas também entre teorias, paradigmas, campos epistemológicos, profissões e campos de saber/fazer. Dessa forma, é mais correto falarmos de práticas “multi”, “pluri”, “inter” e “trans”. Assim, as práticas de interação não se dão apenas entre dimensões e saberes com status acadêmicos, mas também fortemente com o campo expressivo da arte e com os saberes populares, mesmo que de forma contraditória e paradoxal.
·         A proposta de práticas interdisciplinares convive na realidade com uma “sombra” espessa de um conjunto de estratégias de saber/poder, de competição intra e intercorporativa e de processos institucionais e socioculturais muito fortes, que impõem barreiras profundas à troca de saberes e às práticas interprofissionais colaborativas e flexíveis. As diferenças internas se tornam secundárias em caso de ameaça externa aos interesses de uma corporação como um todo. Acontece de as corporações, em nome do prestígio da categoria, tenderem a esconder os erros de seus afiliados. Portanto, uma compreensão mais específica da dinâmica da cultura e identidades profissionais é de fundamental importância para o processo de implementação de novos paradigmas e para uma análise crítica das práticas interdisciplinares.
·         As crises do trabalho nas sociedades capitalistas contemporâneas representam obstáculos para a implementação de práticas interdisciplinares. Nas condições de desemprego estrutural, perda de direitos e conquistas dos trabalhadores, política de reajustes salariais restritivos, aumento da competitividade e introdução vertiginosa de novas tecnologias, o trabalho profissional interdisciplinar encontra dificuldades e barreiras fortíssimas para sua implementação efetiva. Para os trabalhadores engajarem-se em práticas interdisciplinares de todos os tipos, exige o mínimo de reciprocidade em termos de salários dignos, boas condições de trabalho, jornada de trabalho que evite o multiemprego excessivo e investimento em treinamento e supervisão. Essas condições básicas são raramente alcançadas e muitas vez assistimos a uma luta e mobilização muito forte dos trabalhadores e servidores para reivindicarem ou suprirem tais deficiências por diversos outros meios.
·         Recomendações para a implementação de práticas interdisciplinares e interparadigmáticas:
+ Seleção criteriosa dos profissionais e/ou pesquisadores que irão participar de qualquer projeto interdisciplinar constitui um passo fundamental;
+ Incentivo às práticas interdisciplinares nas universidades e instituições acadêmicas em geral não deve se limitar aos dispositivos e ambientes de pesquisa, mas também ampliar-se para a formação básica dos profissionais e para a transformação dos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação;
+ Defender a necessária integração da pesquisa ao ensino e extensão, bem como de esquemas de estágio profissional e de bolsistas de iniciação científica;
+ Estrutura democrática, sem privilégios corporativos, com mecanismos de discussão e decisão horizontais que estimulem a negociação constante;
+ Criar dispositivos onde cada pesquisador ou profissional possa reconhecer e expor as fragilidades, parcialidades e limites de sua abordagem, trocar informações, aprender com a experiência do outro, refazer sua identidade profissional em novas bases;
+ Constituição de um processo o mais coletivo possível.

*Yuri Vasconcelos  é militante do PCB e Coordenação Nacional da UJC.

[Esse é um texto para a seção Crônicas Vermelhas, onde os militantes da UJC/PE opinam, comentam, debatem sobre diversos temas. Para acessar o conteúdo Crônicas Vermelhas basta acessar no "arquivo do blog por temática" a temática Crônicas Vermelhas, ir na página formação ou destaques, ou clicando no marcador dessa postagem.]

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