Umberto Trigueiros Lima (Mazine)
Fazia um calor insuportável no Rio, naqueles dias de janeiro de 1971, 40º à sombra. Lembro que no dia 13, fomos levados para a Base Aérea do Galeão, espremidos em 2 ou 3 camburões pequenos, desde o quartel do Batalhão de Guardas, no bairro de São Cristóvão, onde estávamos recolhidos aguardando o desenlace das negociações do sequestro. Éramos: eu (Umberto), Antonio Rogério, Aluízio Palmar, Pedro Alves, Marcão, Ubiratan Vatutin, Irani Costa, Afonso, Afonso Celso Lana, Bretas, Julinho, Mara, Carmela, Dora e Conceição. Fazia sol a pino e os caras pararam os camburões em algum pátio descampado da Base e deixaram a gente lá torrando dentro daqueles verdadeiros fornos e de puro sadismo e sacanagem riam e gritavam uns para os outros, “...olha aí cara, os rapazes estão com calor, você esqueceu de ligar o ar, eles vão ficar suadinhos...”. Um outro dizia, “...deixa esses filhos da puta esturricarem aí dentro, pode ser que algum deles vá logo para o inferno...”. A viagem ao inferno não era possível, pois já estávamos nele, ou seja nos cárceres da ditadura, há algum tempo. A temperatura dentro dos carros era altíssima, mal conseguíamos respirar pelas poucas frestas de ventilação, os miolos pareciam que iam estourar. Foi um horror!
Ficamos na Base durante todo o dia 13, onde já estavam muitos outros companheiros vindos de outras prisões e de outros estados e lá nos mantiveram o tempo todo algemados em duplas. Nos deram comida podre, tiraram mais impressões digitais, nos obrigaram a tirar fotos nus em diferentes posições. Alguns deles diziam que era para o futuro reconhecimento dos cadáveres... Perto da meia noite nos levaram para o embarque, nos agruparam do lado do avião, frente a um batalhão de fotógrafos postados há uns 50 metros de distância, atrás de uma corda. Éramos 70, mais as filhas do Bruno e da Geny Piola, as menininhas Tatiana, Kátia e Bruna. Os flashes espocavam e muitos de nós levantamos os punhos, outros fizeram o V da vitória, enquanto os caras da aeronáutica por trás davam socos nas costas de alguns companheiros. Nosso voo da liberdade para o Chile decolou aos 2 minutos de 14 de janeiro. Durante o voo, íamos algemados e os policiais da escolta nos provocavam. “...Olha aí malandro, se voltar vai virar presunto, nome de rua...”. A tripulação da Varig, mesmo discreta, foi simpática e afável conosco e quando chegamos a Santiago um comissário de bordo veio correndo me contar que havia uma faixa na sacada do aeroporto que dizia “Marighella Presente”.
Foram 2 longos dias, cheios de tensão, de expectativa, de esperança, todos os sentidos em atenção. Talvez, alguns dos mais longos dias das nossas vidas. Tenho a certeza de que nenhum de nós jamais se esquecerá daqueles momentos. Nas últimas horas da madrugada do dia 14 chegamos ao Chile. Depois de 38 dias de negociações muito difíceis, de risco extremo, mas com muita firmeza e equilíbrio por parte do Comandante Carlos Lamarca e dos companheiros da VPR que realizaram a operação de captura do embaixador suíço, aquela que seria a última grande ação armada da guerrilha urbana brasileira terminava vitoriosa. Começava um novo tempo nas nossas vidas.
Fomos descendo do avião, já sem algemas (os policiais brasileiros da escolta foram impedidos de desembarcar), nos abraçando emocionados, rindo, chorando, cantando a Internacional, acenando para os companheiros brasileiros e chilenos que faziam uma carinhosa manifestação para nos recepcionar.
Um general de Carabineros nos reuniu no saguão do aeroporto e fez uma preleção sobre tudo que estávamos proibidos de fazer no país. Logo em seguida, funcionários do governo da UP e companheiros dos vários partidos da coalizão nos disseram ali mesmo para não levar a sério nada do discurso do tal general. Era o Chile de Salvador Allende que íamos viver e conhecer tão intensamente.
Amanhecia o dia 14 de janeiro de 1971 quando saímos do aeroporto de Pudahuel em ônibus, escoltados por Carabineros. Amanhecia também aquele novo tempo das nossas vidas e amanhecia o Chile da Unidade Popular, da imensa liberdade, das grandes mobilizações populares, da luta de classes ao vivo e a cores saltando diante dos nossos olhos todos os dias. Pelas ruas de Santiago, a caminho do Parque Cousiño onde ficaríamos alojados, os operários que trabalhavam nas obras do Metrô acenavam para a gente, outros aplaudiam, alguns levantavam os punhos cerrados. Imagens que ficariam para sempre na memória, fotografias de um tempo.
Aquele dia parecia infindo, ninguém conseguia pregar um olho, foi um dia enorme, cheio de encontros, de descobertas, de luz. Estávamos bêbados de liberdade e ao mesmo tempo ainda marcados pela sombra da prisão, pelas tristes notícias de mais companheiros covardemente assassinados pelos cães da ditadura. Na nossa primeira refeição no Hogar Pedro Aguirre Cerda a maioria deixou os garfos e facas sobre a mesa e comeu de colher, como fazíamos na prisão. Quando íamos para os quartos de alojamento, alguns cometiam o ato falho de dizer “...vou para a cela...”. Na nossa primeira saída, um grupo se perdeu na cidade e voltou para o Hogar de carona num camburão dos Carabineros, motivo de gozação geral. Lembro da imensa solidariedade e carinho com que fomos recebidos pelos companheiros chilenos e também por estudantes, intelectuais, artistas, operários, pessoas do povo enfim que iam nos visitar, que fizeram coletas para nos arranjar algum dinheiro e roupas, que nos queriam levar para suas casas.
Nas semanas e meses seguintes, pouco a pouco fomos nos dispersando, construindo nossas opções de militância, de vida.
Viveríamos intensamente aquele processo chileno e também nossos vínculos com a luta no Brasil. Nos encharcaríamos com o aprendizado daquela magistral aula de história e de política “em carne viva”. Paixões, alegrias, nostalgias, saudade, amores, amizade, solidariedade, companheirismo, tudo junto, ao mesmo tempo.
Muitos de nós estivemos no Chile até o fim, vivendo e testemunhando os horrores do golpe de 11 de setembro de 1973. Em muitos casos, mais uma vez, escapando por pouco, por muito pouco.
Outros companheiros, por diferentes razões de militância e pessoais foram viver em outros países. Alguns trataram de organizar suas voltas clandestinas ao Brasil, na esperança de continuar a luta armada. Uns poucos conseguiram manter-se, mas infelizmente, nessa empreitada de luta, vários companheiros foram assassinados. Honro as suas memórias e me orgulho de termos compartido aqueles momentos tão significativos das nossas vidas.
Foi o tempo que nos tocou viver. Era um tempo de guerra, mas também de uma enorme esperança.
Na passagem dos 40 anos da nossa libertação, acho que deveríamos dedicar a memória desse encontro fraterno, em primeiro lugar aos companheiros do nosso grupo chacinados pelas ditaduras brasileira e chilena, como também aqueles que marcados por sequelas e feridas psicológicas insuportáveis não conseguiram continuar suas vidas : Daniel José de Carvalho, Edmur Péricles Camargo, João Batista Rita, Joel José de Carvalho, Wânio José de Matos, Tito de Alencar Lima, , Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Gustavo Buarque Schiller. Em segundo lugar, com saudade, a todos os companheiros daquela viagem para a liberdade de 14 de janeiro de 1971, que já nos deixaram. Com eterna gratidão e reconhecimento ao Comandante Carlos Lamarca e aos combatentes da VPR que realizaram aquela ação revolucionária audaz e vitoriosa. E também a todos os brasileiros da nossa geração (e aqui não falo em idade, que pode ter ido dos 12 aos 80) que não se acovardaram, que foram capazes de enfrentar aqueles duros e difíceis tempos, quando dizer não poderia significar a morte, “...quando falar em árvores era quase um crime...”.
Enfim, a todos os que OUSARAM LUTAR...!
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