Entrevista
No momento em que o capital prossegue a sua ofensiva de classe contra os trabalhadores, em Itália os comunistas, os revolucionários encontram-se dispersos por organizações diversas, à volta de revistas e publicações. No entanto, como diz Doménico Losurdo nesta entrevista,
“O modelo do Partido comunista elaborado por Lenine parece-me manter-se válido; evidentemente, é preciso ter em conta que o seu Que fazer? se referia à Rússia czarista e também, portanto, às condições de clandestinidade em que o partido era obrigado a funcionar. Em todo o caso, trata-se de construir um partido que não seja um partido de opinião e que não se caracterize pelo culto da personalidade, como foi o caso durante tanto tempo da Rifondazione Comunista. É preciso um partido capaz de construir um saber colectivo alternativo às manipulações da ideologia dominante, um partido que deve saber estar presente nos locais do conflito e deve saber também, quotidianamente, construir uma alternativa tanto no plano ideológico como no da organização política.”
Estamos em Urbino, com o professor Domenico Losurdo, professor de história da filosofia na Universidade “Carlo Bo”, filósofo de renome internacional e presidente da Associação Marx XXI. Recebe-nos num momento em que somos confrontados com um ataque do capital (contra todo o mundo do trabalho, contra a democracia, contra a Constituição saída da Resistência) que é um dos mais fortes e perigosos de toda a história da nossa república. Perante este ataque estende-se um deserto, a ausência de oposição de classe e de massas que possa rechaçar a ofensiva da reacção e relançar uma contra-ofensiva.
Sara Milazzo (SM): Fazemos-lhe a seguinte pergunta: Como é que chegámos aqui? O que é que falta, como construir um dique, uma resistência, um contra-ataque?
Domenico Losurdo (DL) : Podemos distinguir dois problemas que acompanham a história da República em toda a sua existência. O primeiro problema é a desproporção entre o norte e o sul: já Togliatti tinha sublinhado que a “questão meridional” é uma questão nacional e estamos hoje em vias de ver como o défice de solução do subdesenvolvimento do sul corre o risco de pôr em perigo a unidade nacional.
O outro problema é a injustiça social que se manifesta de forma particularmente gritante no fenómeno da evasão fiscal. É dizer pouco dizer que este flagelo não foi contido de nenhuma forma: pelo contrário, tornou-se mais escandaloso, mais explícito, até ser mesmo encorajado pelo Presidente do Conselho: falou dele como duma coisa que pode ser tolerada no caso em que um indivíduo singular, mesmo que seja o rico capitalista, ache que foi demasiado apertado pela pressão fiscal.
Se é verdade que estes dois problemas acompanham a história da república em toda a duração da sua evolução, nós podemos acrescentar que hoje há problemas novos que fazem pensar numa verdadeira contra-revolução. Porventura a viragem deu-se em 1991, o ano que assiste ao fim do Partido Comunista Italiano. Este fim tinha sido anunciado por declarações enfáticas: os ex-comunistas declaravam que, acabando com um partido ligado ao desacreditado “socialismo real”, tudo se tornaria mais fácil: libertavam-se do “chumbo na asa”, e a democracia e o Estado social iriam desenvolver-se; em resumo, tudo correria pelo melhor. É dizer pouco dizer que, na realidade, estamos perante uma contra-revolução que certamente não é um exclusivo italiano, porque tem um carácter internacional, mas que se manifesta de modo particularmente virulento no nosso país.
Vejamos quais são os elementos dessa contra-revolução: a República Italiana nascida da Resistência, e marcada pela presença de um partido comunista forte na oposição, nunca se comprometeu directamente em operações guerreiras; actualmente, pelo contrário, a participação em guerras de carácter claramente colonialista é considerada como uma coisa normal, ou mesmo um dever.
Assiste-se, além disso, a um ataque contra o Estado social e ao seu desmantelamento: toda a gente percebe isso. Pelo contrário, é menos evidente um facto para o qual gostaria de chamar a atenção: o ataque contra o Estado social não é determinado em primeira-mão pelas compatibilidades económicas, pela necessidade de economia, porque falta o dinheiro (entenda-se). Recordemos que um dos patriarcas do neo-liberalismo (que chegou a ser coroado com o prémio Nobel de economia), Friedrich August Von Hayek, declarava, por altura dos anos 70 do século passado, que os direitos socioeconómicos (exactamente os que são protegidos pelo Estado social), eram uma invenção que ele considerava catastrófica: eram resultado da influência exercida pela “revolução marxista russa”. E apelava pois para a libertação dessa herança maléfica. Percebe-se assim que, ao desaparecimento do desafio que a União Soviética e um campo socialista forte representavam, tenha correspondido e continue a corresponder cada vez mais o desmantelamento do Estado social.
Há, por fim, um terceiro aspecto da contra-revolução que não devemos perder de vista. É o verdadeiro ataque à democracia que assume formas particularmente gritantes na fábrica, Aí a contra-revolução é evidente ao ponto de ser praticamente declarada: o poder patronal deve poder exercer-se sem demasiados limites, a Constituição não deve ser causa de embaraço nas relações de trabalho. Mas há um aspecto que passa para além da fábrica e que diz respeito à sociedade no seu conjunto: é o avanço de um “bonapartismo suave” (que defini no meu livro Democracia ou bonapartismo) incarnado no nosso país pelo Presidente do Conselho. A propósito da ascensão deste personagem, queria chamar a atenção para um outro fenómeno não menos inquietante: hoje em dia a riqueza exerce um peso político imediato. Enquanto existiu na Itália o sistema proporcional, era mais fácil a formação de partidos políticos de massas, e era possível conter dentro de certos limites o peso político da riqueza que, actualmente e pelo contrário, se exprime de forma imediata, mesmo despudorada. Assistimos ao aparecimento e à afirmação dum líder político que, a partir da concentração dos meios de informação e utilizando sem preconceitos a enorme riqueza à sua disposição, pretende exercer, e exerce de facto, um poder decisivo sobre as instituições políticas e revela uma total capacidade de corrupção e de manipulação.
Nesta altura, podemos traçar um primeiro balanço: a viragem de 1991, que assistiu à dissolução do PCI e que devia ter favorecido a renovação democrática e social da Itália, foi na realidade o ponto de partida duma contra-revolução que, certamente, é de dimensão internacional, mas que se revela de modo especialmente doloroso na Itália, neste país que, graças à Resistência e à presença duma esquerda forte e de um Partido comunista forte, permitiu conquistas democráticas e sociais muito importantes.
SM: A propósito disso, uma pergunta: como foi possível que, num país que devia ter precisamente uma memória ainda fresca do que foi a Resistência, se tenha chegado a uma anestesia das consciências a ponto de o nosso Presidente do Conselho não só ser amado do ponto de vista pessoal, como ser mesmo invejado? Como explicar por um lado o fascínio pelo “self made man” e por outros fenómenos como a anti-política de Grillo [1]? E, se pensarmos no que se poderá definir como o terceiro pólo: como explicar o fascínio que a esquerda sente por uma personalidade como a de Vendola [2] que, até há pouco tempo, fazia parte da Rifondazione Communista e que agora preenche o vazio que se abriu genericamente à esquerda do Partito Democrático?
DL: Assistimos a uma contra-revolução de que já defini os elementos políticos centrais; mas não podemos esquecer que essa contra-revolução também se dá ao nível ideológico-cultural. Estamos em vias de reescrever de forma totalmente fantasista e vergonhosa a história não só do nosso país, como de todo o século XX.
Quais são os elementos fundamentais dessa história? A partir da Revolução de Outubro começaram três gigantescos processos de emancipação. O primeiro foi o a independência dos povos coloniais: nas vésperas da viragem de 1917, os países independentes eram apenas em número bastante restrito, quase todos situados no ocidente. A Índia era uma colónia, a China um país semi-colonial; toda a América do sul estava submetida ao controlo da doutrina Monroe e dos EUA. A África tinha sido repartida entre as diversas potências colonialistas europeias. Na Ásia, a Indonésia, a Malásia, etc. eram colónias. O gigantesco processo de descolonização e de emancipação que pôs fim a essa situação viu o seu primeiro impulso na Revolução de Outubro.
O segundo processo foi o da emancipação das mulheres: é importante recordar que o primeiro país em que as mulheres passaram a usufruir da totalidade dos direitos políticos e eleitorais (activos e passivos) foi a Rússia revolucionária, entre Fevereiro e Outubro de 1917. Foi apenas num segundo tempo que chegaram ao mesmo resultado a Alemanha da República de Weimar, saída de uma outra revolução, a de Novembro de 1918, depois os Estados Unidos. Em países como a Itália e a França, as mulheres só conquistaram a sua emancipação na onda da Resistência anti-fascista.
Finalmente, o terceiro processo foi a eliminação da discriminação eleitoral que, em matéria de direitos políticos, continuava a discriminar negativamente as massas populares: na Itália liberal e dos Sabóias, em vez de ser eleito pelas bases, o Senado era apanágio da grande burguesia e da aristocracia. A discriminação eleitoral também se fazia sentir em Inglaterra, e não somente pela presença da Câmara dos lordes; ainda em 1948, havia 500 000 pessoas que gozavam de voto plural e portanto da faculdade de votar várias vezes: eram consideradas como mais inteligentes (claro que se tratava de pessoas ricas do sexo masculino).
Para acabar. No decurso do século XX desenvolveu-se em três frentes um gigantesco processo de emancipação que partiu da Revolução de Outubro e da luta contra a guerra e a carnificina do primeiro conflito mundial. Tudo isso é actualmente esquecido e rejeitado a tal ponto que, na ideologia que é hoje dominante, a história do comunismo se torna na história do horror.
O paradoxo é que nesta gigantesca manipulação não participou apenas a direita propriamente dita; Fausto Bertinotti [3] prestou uma grande contribuição, assim como Vendola que é seu herdeiro e seu discípulo. Não há qualquer dúvida que também ele se dedicou à tentativa de apagar da memória histórica o gigantesco e múltiplo processo de emancipação saído da Revolução de Outubro: desse grande capítulo da história, Bertinotti traçou um resumo que não é muito diferente do que foi traçado pela ideologia e pela classe dominante.
E assim acabou por se constituir uma cultura, ou mais exactamente uma “incultura”, que dá muito jeito para a ordem existente. Tal como no plano propriamente político, também no plano ideológico está em marcha o que defini (sempre em Democracia ou bonapartismo) o regime de “monopartismo competitivo”. Assistimos ao funcionamento de um partido único que, segundo modalidades diversas, remete para a mesma classe dominante, para a burguesia monopolista. Evidentemente, existe sempre o momento da competição eleitoral, mas trata-se de uma competição entre camadas políticas em que cada uma delas tenta realizar ambições a curto prazo, sem nunca pôr à discussão o quadro estratégico, a orientação cultural de fundo e a classe de referência, ou seja, a burguesia monopolista; sobre isso tudo, nem sequer se discute.
Eis a situação perante a qual nos encontramos: o Monopartismo Competitivo. O desaparecimento do sistema proporcional só favoreceu a sua consolidação.
E, ma ausência de uma verdadeira alternativa, compreende-se os fenómenos da anti-política, do “grillisno”: apesar das suas declarações, acabam por fazer parte integrante do regime político e do mesmo panorama desolador que tentei descrever resumidamente.
SM: Esses fenómenos são pois uma outra forma de anestesia, uma tentativa de refrear qualquer tipo de reacção que seja, mesmo as que provêem das mesmas camadas sociais.
DL: É um facto que falta hoje uma força política organizada e estruturada que se oponha à manipulação ideológica e historiográfica e ao monopartismo competitivo que reinam actualmente. Ficam assim sem contestação o domínio e a hegemonia da burguesia monopolista, assim como a contra-revolução neo-liberalista e pró-imperialista de que falei.
SM: Seria necessário um movimento comunista precisamente para as questões de fundo que invadem a Itália e o mundo inteiro. Porque é que no nosso país o movimento comunista vive uma crise tão profunda?
DL: A partir de 1989 assistimos a uma vitalidade nova das forças conservadoras e reaccionárias e esse vitalidade também se manifestou na Itália. Isso não nos deve espantar. É uma outra coisa que deve suscitar as nossas inquietações: porque é que no nosso país essa ofensiva contra-revolucionária encontrou uma resistência tão fraca, uma total falta de resistência mesmo e, em certos casos, como já disse, pôde mesmo beneficiar do encorajamento por parte dos que deviam constituir a esquerda?
A partir de 1989, a esquerda também começou a dizer que o comunismo estava morto. A propósito dessa palavra de ordem, que continua a aparecer, queria tecer algumas considerações enquanto historiador e enquanto filósofo. Apresenta-se como uma coisa nova mas, na realidade, é bastante velho: o comunismo foi sempre declarado morto, ao longo de toda a sua história; podemos mesmo dizer que o comunismo foi declarado morto antes mesmo do seu nascimento.
Não se trata de um paradoxo nem de uma piada. Vejamos o que se passa em 1917: a Revolução de Outubro ainda não tinha estalado, já grassava a carnificina da primeira guerra mundial. É exactamente nesse ano que um filósofo italiano de estatura internacional, Benedetto Croce, publica um livro intitulado Materialismo histórico e economia marxista. O prefácio apressa-se a declarar imediatamente que o marxismo e o socialismo estão mortos. O raciocínio é simples: Marx previra e invocara a luta de classes proletária contra a burguesia e o capitalismo, mas onde estava nesse momento a luta de classes? Os proletários andavam a cortar as cabeças uns aos outros. Em vez da luta de classes, assistia-se à luta entre os Estados, entre as nações que se confrontavam no campo da batalha. E, portanto, a morte do marxismo e do socialismo estavam à vista de todo o mundo. Ou seja, antes mesmo de aparecer e de se desenvolver o movimento comunista propriamente dito, que verá o seu nascimento na Revolução de Outubro e de seguida com a fundação da Internacional comunista, antes mesmo disso tudo, esse movimento já tinha sido declarado morto, sob os cuidados de Benedetto Croce. Sabemos hoje, tarde demais, que a disputa pela hegemonia e a guerra imperialista, consideradas por Croce como um facto imutável, constituíram o ponto de partida da Revolução de Outubro, que se impôs precisamente na luta contra a carnificina provocada pelo sistema capitalista e imperialista. Foi assim que começou o movimento comunista. E as declarações de morte sucederam-se… Enquanto que na Rússia soviética era introduzida a NEP [Nova Economia Politica], uma série de jornais europeus e americanos e intelectuais de primeiro plano e eminentes homens políticos opinaram: vejam, acabou a colectivização total dos meios de produção, que tinha sido proposta e solicitada por Karl Marx; até Lenine foi obrigado de reconhecer a necessidade da viragem; portanto o comunismo está morto. Basta ler qualquer livro de história um pouco mais profundo do que os manuais consensuais para perceber como é recorrente esta palavra de ordem que estamos a analisar. Os que continuam a afirmar que o comunismo está morto, julgando que estão a anunciar uma novidade, não se apercebem, por causa da sua ignorância histórica ou da sua adesão acrítica ou da sua submissão à ideologia dominante, que estão apenas a repetir um slogan recorrente na história da luta da burguesia e do imperialismo contra o movimento comunista.
Quanto a este ponto quase poderíamos concluir com uma piada: há um provérbio segundo o qual um indivíduo considerado morto e de que se faz o elogio fúnebre embora ele esteja ainda vivo, está destinado a gozar de longevidade. Se esse provérbio também fosse válido para os movimentos políticos, os que se reclamam do comunismo podem ter toda a confiança no futuro.
SM: Partindo do pressuposto que haja uma necessidade social e histórica a favor de uma nova vaga revolucionária e que o renascimento de um Partido Comunista seja absolutamente necessário, quais são as características que ele deverá ter, quais são os passos a dar e quem deverá fazê-los e de que modo?
DL: É preciso distinguir a dimensão ideológico-política da dimensão organizativa. Vou concentrar-me na primeira. O que é que significa então falar da morte do comunismo quando nos encontramos frente a uma situação em que a guerra reapareceu na ordem do dia, e quando se agrava todos os dias o perigo de um conflito em grande escala? Sim, até agora temos assistido e continuamos a assistir a guerras do tipo colonialista clássico: ocorrem quando uma potência armada até aos dentes e com uma nítida superioridade tecnológica e guerreira se encarniça contra um país, ou contra um povo, que não pode opor qualquer resistência. São guerras coloniais, por exemplo, a que a NATO lançou contra a Jugoslávia em 1999, as diversas guerras do Golfo, a guerra contra o Afeganistão. Sem falar da guerra interminável, a mais vergonhosa de todas, que continua a desencadear-se contra o povo palestino.
Mas actualmente os grandes órgãos de informação internacionais observam que existe o perigo concreto de guerra em grande escala: a que se seguiria à agressão desencadeada pelos Estados Unidos e Israel contra o Irão. Não se sabe qual poderá ser a evolução e as complicações internacionais. E sobretudo, não devemos perder de vista a guerra (por agora fria) que os EUA começam a travar contra a República Popular da China: é preciso ser muito ingénuo para não perceber isso. Estamos perante uma situação que torna urgente o dever de lutar contra o imperialismo e a sua política de agressão e de guerra, e isso faz-nos voltar evidentemente à história do movimento comunista.
O outro elemento que devemos ter em conta é a crise económica. Quem se esqueceu dos discursos triunfais, segundo os quais o capitalismo já tinha ultrapassado as suas crises periódicas, crises essas de que Marx tinha falado? E até - garantiam-nos - não só se devia falar do fim da crise mas pura e simplesmente do fim da história. Actualmente, pelo contrário, a crise do capitalismo está debaixo dos nossos olhos e são muitos os que pensam que está para durar; não é fácil prever a sua evolução, mas de certeza que não se trata de um fenómeno puramente contingente.
Portanto, é clara a permanência dos problemas, das questões centrais que estão na origem do movimento político comunista.
Vejamos agora o segundo aspecto: o que é que significa falar do fim do comunismo quando vemos um país como a China, que representa um quinto da população mundial, ser dirigido por um partido comunista? Podemos e devemos discutir as opções políticas dos grupos dirigentes, mas não podemos deixar de admirar a ascensão prodigiosa de um país de dimensão continental que liberta da fome centenas de milhões de pessoas e que, ao mesmo tempo, altera profundamente (num sentido desfavorável ao imperialismo) a geografia política do mundo.
Neste ponto é necessário fazer uma pergunta: qual foi o conteúdo político central do século XX? Já falei dos três movimentos de emancipação que caracterizam a história do século XX. Detenhamo-nos sobre quem teve o desenvolvimento planetário mais amplo: todo o século XX foi atravessado por gigantescas lutas de emancipação, travadas pelos povos coloniais ou ameaçados de serem submetidos ao colonialismo: pensemos na China, no Vietname, em Cuba, na própria União Soviética que, na luta contra a tentativa hitleriana de criar um império colonial precisamente na Europa oriental, teve que travar a Grande guerra patriótica. Esse processo gigantesco desapareceu no século XXI, no século em que vivemos? Não, ele continua. Mas há outros. Para além dos casos trágicos, como o do povo palestino que é obrigado a sofrer o colonialismo na sua forma clássica e mais brutal, nos outros países a luta anti-colonialista passou da fase propriamente político-militar para a fase político-económica. Esses países tentam garantir uma independência que já não é apenas política mas também económica; estão portanto empenhados em romper com o monopólio tecnológico que os Estados Unidos e o imperialismo julgavam ter conquistado duma vez por todas. Por outras palavras, estamos perante a continuação da luta contra o colonialismo e o imperialismo que constituiu o conteúdo principal do século XX. E, tal como no século que já passou, onde foram partidos comunistas que estimularam e dirigiram esse movimento, também agora vemos países como a China, o Vietname ou Cuba guiar no século XXI essa nova fase do processo de emancipação anti-colonialista. Por certo não é por acaso que estes três países são dirigidos por partidos comunistas. Os que declaram morto o movimento comunista, e pensam estar a falar de uma coisa evidente, não se apercebem que estão a repetir uma idiotice macroscópica.
SM: Portanto existem as condições objectivas materiais para um relançamento, mesmo na Itália, de um Partido Comunista de quadros e com o apoio das massas?
DL: Sinceramente, creio que sim, estou mesmo convencido disso: não vemos porque é que a Itália tenha que ser uma anomalia em relação ao quadro internacional. Se é verdade que, na Europa oriental, entre 1989 e 1991, o movimento comunista sofreu uma severa derrota, que evidentemente é preciso reconhecer e ter em conta, também é verdade que a situação mundial no seu conjunto apresenta um quadro bastante mais variado e decisivamente mais encorajador. Por exemplo, regressei duma viagem a Portugal, onde tive ocasião de apreciar a presença do Partido Comunista. É sabido que em Itália temos uma grande tradição comunista por detrás de nós e não há nenhuma razão para nos apropriarmos dela, claro de que modo crítico. Creio que existem também os pressupostos não somente ideais mas também políticos para pôr fim ao fraccionamento das forças comunistas. Circulando pelo nosso país, mais em manifestações culturais do que políticas, observei que o potencial comunista é real. Os comunistas estão é fragmentados em diversas organizações, por vezes mesmo em pequenos círculos: é preciso arregaçar as mangas e pôr-se ao trabalho pela unidade, apoiando-se primeiro que tudo nas forças comunistas que já estão presentes de modo mais ou menos organizado a nível nacional. Estou a pensar em L’Ernesto, que actua no quadro da Rifondazione Comunista, e no PdCI (Partito dei Comunisti italiani, N.T.): se se unissem, estas duas forças ficariam em condições de lançar um sinal aos círculos comunistas difusos pelo território nacional, um convite para abandonarem a resignação e o sectarismo para se porem ao trabalho a fim de concretizarem os ideais e um projecto comunista.
SM: Então, o que impede a construção de um Partido Comunista único em Itália, na sua opinião, é essa fragmentação, esse cansaço para enfrentar de novo lutas que uma série de camaradas já travaram?
DL: A Itália ressente-se do peso de uma situação especial: a acção negativa dum partido, o da Rifondazione comunista, conduzido durante muito tempo por dirigentes com uma visão substancialmente anti-comunista, dirigentes que se dedicaram activamente a liquidar a herança da tradição comunista no mundo e na Itália. É evidente que devemos libertar-nos dessa fase trágica e grotesca da história que temos atrás de nós; desse ponto de vista a reconstrução do Partido não é apenas um dever organizativo, mas é um dever sobretudo teórico e cultural. Creio que esses problemas podem ser enfrentados e resolvidos positivamente.
SM: Encontramo-nos actualmente numa situação em que assistimos a uma mudança de perspectiva mesmo cultural. Enquanto que no século XX, a hegemonia cultural era apanágio do movimento comunista, hoje a palavra comunista é vivida quase com embaraço, ou mesmo com uma vergonha manifesta, até ao ponto das declarações de Bertinotti sobre a impronunciabilidade da palavra comunista ou sobre a redução do seu significado, na melhor das hipóteses, a qualquer coisa puramente cultural. Como é que se chegou a este ponto e como nos podemos libertar de tudo isso?
DL: A palavra comunismo será impronunciável? Enquanto historiador tenho que observar imediatamente que então devíamos renunciar a palavras que servem de referência aos movimentos políticos actuais em geral. Como é que se chamava nos EUA o partido que defendeu até ao fim a instituição da escravatura dos negros? Chamava-se Partido Democrata. E como se chamava, também nos EUA, o partido que, mesmo depois da abolição formal da escravatura, defendeu o regime da supremacia branca, da segregação racial, do linchamento dos negros organizado como tortura lenta e interminável e como espectáculo de massas? Chamava-se, mais uma vez, Partido Democrata. Sim, os campeões da escravatura e do racismo mais vergonhoso fizeram profissão de fé de democracia. Deveríamos concluir que “democracia” é impronunciável? Pensar que a palavra democracia tem uma história mais bela, mais limpa, mais imaculada, do que a palavra comunismo significa não conhecer nada da história. O que eu disse a propósito da palavra democracia podia ser repetido calmamente para outras palavras que fazem parte essencial do património da esquerda. Como se chamava o partido de Hitler? Chamava-se Partido nacional-socialista: também devemos considerar a palavra socialista como um tabu? Para sermos exactos, o partido de Hitler chamava-se Partido nacional-socialista dos operários alemães. Então seria inconveniente e inaceitável fazer referência aos operários e à classe operária. Não há nenhuma palavra que possa exibir o estatuto da pureza. Hitler e Mussolini pretendiam ser os promotores e os protagonistas duma revolução; eis outra palavra que, segundo a lógica de Bertinotti, devia ser impronunciável.
Na realidade, esta proposta sobre a impronunciabilidade da palavra “comunismo” pressupõe não só uma total subserviência em relação à ideologia dominante mas também uma total incapacidade de julgamento histórico e político. Para clarificar este último ponto, apoiar-me-ei numa comparação que ilustrei no meu livro Controstoria del liberalismo (Contra história da democracia, N.T.). Nos anos trinta do século XIX, duas ilustres personalidades francesas visitam os EUA. Uma é Alexis de Tocqueville, o grande teórico liberal; a outra é Victor Schoelcher, aquele que, depois da revolução de Fevereiro de 1848, vai abolir definitivamente a escravatura nas colónias francesas. Ambos visitam os EUA no mesmo período, mas independentemente um do outro. Constatam os mesmos fenómenos: o governo da lei e da democracia estão em vigor na comunidade branca; mas os negros sofrem a escravatura e uma opressão feroz, enquanto que os peles-vermelhas são progressiva e sistematicamente eliminados da superfície da terra. Na altura das conclusões, a começar pelo título do seu livro (A democracia na América), Tocqueville fala dos EUA como de um país autenticamente democrático, e até mesmo como do país mais democrático do mundo; Schoelcher, pelo contrário, vê os EUA como o país onde reina o despotismo mais feroz. Qual dos dois tem razão?
Imaginemos que no século XX, Tocqueville e Schoelcher regressavam ambos de uma volta ao mundo. O primeiro acabaria por elogiar o governo da lei e da democracia em vigor nos EUA e no “mundo livre” e considerar como pouco importantes a opressão e as práticas genocidas impostas por Washington e pelo “mundo livre” nas colónias e semi-colónias (na Argélia, no Quénia, na América do Sul, etc.), o assassínio sistemático de centenas de milhares de comunistas organizado pela CIA num país como a Indonésia, a discriminação, a humilhação e a opressão infligidas mesmo na metrópole capitalista e “democrática” à custa dos povos de origem colonial (os negros nos EUA, os argelinos em França, etc.). Schoelcher, pelo contrário, concentraria a sua atenção precisamente sobre tudo isso e concluiria que era o chamado “mundo livre” que exercia o pior despotismo. Compreende-se bem que a ideologia dominante se identifique sem reservas com o Tocqueville real e o Tocqueville imaginário. A sorte reservada aos povos coloniais e de origem colonial não conta!
Contra esta perspectiva, repito o que já disse: os comunistas devem saber olhar de modo autocrítico a sua história mas não têm que ter vergonha e não devem entregar-se à autofobia; foi o movimento comunista que pôs fim aos horrores que caracterizaram a tradição colonialista (que descambou de seguida no horror do Terceiro Reich, no horror do regime que sofreu a sua primeira e decisiva derrota graças à União Soviética).
SM: Podemos dizer portanto que a via para a reconstrução do Partido comunista passa inevitavelmente pela escolha de se reapropriar do que constituiu as suas próprias raízes, do que foi o orgulho comunista e também da linguagem que faz parte dele?
DL: Sem dúvida alguma. Essa reapropriação deve ser totalmente crítica, mas essa atitude também não é uma coisa nova. Quando Lenine lançou o movimento comunista, por um lado ligou-se à tradição socialista precedente, mas por outro lado soube reinterpretar essa tradição num sentido crítico, mantendo presente a evolução da história da sua época. Nos nossos dias, não se trata de forma alguma de evitar um balanço autocrítico, que se impõe absolutamente. Mas isso não tem nada a ver com a aceitação do quadro maniqueísta proposto ou imposto pela ideologia dominante. Esse quadro não corresponde de forma alguma à verdade histórica mas apenas à necessidade política e ideológica das classes dominantes e exploradoras de fazer calar toda a oposição de peso.
SM: Então, na prática como é que deveremos trabalhar para voltar a dar à classe operária um Partido Comunista que esteja à altura dos temas e da confrontação de classe? Como podemos ter uma relação fecunda com os cidadãos italianos?
DL: O modelo do Partido comunista elaborado por Lenine parece-me manter-se válido; evidentemente, é preciso ter em conta que o seu Que fazer? se referia à Rússia czarista e também, portanto, às condições de clandestinidade em que o partido era obrigado a funcionar. Em todo o caso, trata-se de construir um partido que não seja um partido de opinião e que não se caracterize pelo culto da personalidade, como foi o caso durante tanto tempo da Rifondazione Comunista. É preciso um partido capaz de construir um saber colectivo alternativo às manipulações da ideologia dominante, um partido que deve saber estar presente nos locais do conflito e deve saber também, quotidianamente, construir uma alternativa tanto no plano ideológico como no da organização política.
Queria concluir com duas observações. A primeira: o exemplo da Lega (Liga do Norte, partido xenófobo e secessionista de Umberto Bossi, N.T.) (um partido que tem características reaccionárias e que nos apresenta cenários muito inquietantes) demonstra que era terrivelmente errónea a visão segundo a qual não havia espaço para um partido enraizado no território e no local do conflito.
A segunda observação leva-me exactamente ao início da nossa conversa, em que eu recordei o ensinamento de Togliatti sobre a questão meridional como uma questão nacional. Actualmente impõe-se uma constatação amarga: a falta de solução da questão meridional está em vias de pôr em crise, ou corre o risco de pôr em crise, a unidade nacional do nosso país: num país caracterizado por grandes desequilíbrios regionais, o desmantelamento definitivo do Estado social passa pela liquidação do Estado nacional e da unidade nacional. O partido comunista que somos chamados a reconstruir na Itália fará a demonstração do seu internacionalismo concreto na medida, também, em que saiba enfrentar e resolver a questão nacional. Aderir aos movimentos secessionistas ou mesmo não os combater até ao fundo significará romper com a melhor tradição comunista. É preciso ter sempre presente a lição da Resistência: o Partido comunista tornou-se um forte partido de massas na medida em que soube ligar a luta social e a luta nacional, interpretar as necessidades das classes populares e ao mesmo tempo assumir a direcção de um movimento que lutava para salvar a Itália.
Notas :
[1] Beppe Grillo: actor cómico muito conhecido em Itália. Envolveu-se na época numa polémica com o PSI de Bettino Craxi que impôs a sua exclusão da televisão pública. É actualmente líder de um movimento (“5 Stelle”, 5 estrelas), de contornos qualunquistas (movimento pós-guerra que tentou afastar os partidos políticos do governo italiano - N.T.), que apela ao boicote dos partidos e das instituições e apela a uma forma pouco provável de democracia directa através da Internet. Mas é necessário sublinhar que o seu movimento tem uma grande audiência, sobretudo entre os leitores que votavam antigamente nos partidos comunistas e na esquerda radical; estes eleitores viraram-se para Grillo, desiludidos com a fraca autonomia desses partidos e a sua infeliz participação no governo Prodi (“são todos iguais”).
[2] Nicola -Nichi- Vendola: nasceu e cresceu no PCI, está próximo das posições organizativas da esquerda de Pietro Ingrao, e foi um dos principais líderes do PRC. Partidário fervoroso do método das primárias, foi eleito presidente da Região Puglia onde exerce actualmente o seu segundo mandato. Derrotado na corrida para o secretariado do PRC, fundou um partido pessoal, Sinistra Ecologia e Liberta (Esquerda Ecologia e Liberdade). Sempre através do método das primárias, visa actualmente a remodelação, numa perspectiva mais radical, da esquerda moderada italiana; para esse efeito lançou a sua própria candidatura como presidente do Conselho, em concorrência com os candidatos do Partito Democrático. Herdeiro de Fausto Bertinotti, é também o teórico de um populismo retórico de esquerda, de veia poético-literária, por assim dizer.
[3] Fausto Bertinotti: ligado na juventude à esquerda socialista de Riccardo Lombardi, depois líder da ala esquerda da CGIL (mais ou menos equivalente à CGT francesa, N.T.), foi “inscrito” como secretário do PRC (Partito della Rifondazione Comunista) pelo velho líder comunista Armando Cossutta. Dirigiu a Rifondazione durante mais de 10 anos, dando-lhe uma visibilidade mediática notável e força eleitoral. Mas foi também o principal fautor da sua descomunistização e mutação num partido de esquerda radical. Depois de ter ligado o destino do PRC ao movimento não-global e ao radicalismo mais avançado, impôs uma viragem de 180 graus em 2005, levando o seu próprio partido para o governo Prodi e aceitando a presidência da Câmara. Isso não foi aceite pelos eleitores que, nas eleições de 2008, rejeitaram clamorosamente a coligação da esquerda radical.
* Sara Milazzo é colaboradora da revista comunista italiana L’Ernesto.
Doménico Losurdo, filósofo e Professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino, Itália, é amigo e colaborador de odiario.info.
Esta entrevista a Domenico Losurdo, foi publicada na revista italiana http://www.lernesto.it/index.aspx?m=77&f=2&IDArticolo=19905
Todas as notas de rodapé foram escritas, para a versão francesa desta entrevista, por Stefano G. Azzarà ( s.azzara@uniurb.it Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. ), historiador de filosofia na Universidade de Urbino (Itália) http://materialismostorico.blogspot.com/ .
Tradução de Margarida Ferreira
Fonte: http://www.odiario.info/?p=1933
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